quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Rebanhos de Nuvens


— Rebanhos e rebanhos de nuvens! — indicou uma voz a transparecer excitação.
— Mas quem os pastoreia? — indaguei.
— Sei lá eu! Talvez o vento.
— É Deus, é Deus! — interveio-o um pássaro de voz grave em resposta à minha pergunta.

A situação intrigou-me por demais, não tanto pela voz de tenor a dotar tão pequena ave, mas sobretudo porque os pássaros — é sabido — são geralmente ateus convictos. Certamente por passarem tanto tempo da sua existência passeriforme a cruzar a abóbada celeste terão desacreditado no reino dos céus, que para além de tudo lhes é bem mais monótono que o meio terrestre.
Deu-se de seguida uma tosquia terrível e toda aquela lã caiu sobre a forma de fortes chuvadas sobre a terra sequiosa. No dia seguinte a maioria do rebanho tinha partido, mas no céu azul divertia-se em acrobacias aquele pássaro com ar gozão.


quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A Memória - Etérea, Nebulosa, Intangível.


Sem ser só
Nem ser sei,
Serei
Somente o pó
De onde andei.

Se eu nunca pus
Os pés no chão
Sobrevoei, só.
Então,
Porquê poeira a levitar?
Que adensa o vento,
Sufoca o ar.
Se eu não a pude levantar,
Por onde andei
Quem o pisou?
Ao chão que a mim nunca tocou
Tão leve, breve se caminhou
O caminho que me formou.
Esse etéreo trilho na memória
Evanescente.
Estivesse ele
Agora em frente,
Oh, estivesse ele aqui em frente
Para ser sofrido
Com prazer.

Quem teve sede
Vede bem,
Não a saciou ninguém.
Foram copos e copos de nada, em rodadas intermináveis.
Foram afogamentos enxutos, de nadadores hábeis.
Foi uma enorme bebedeira dos sentidos.
Foi o que foi.
E no fim, nada.
Nem a ressaca nos sobrou.
Só a confusa amnésia.

Uma pele beijada, sem lhe tocar.
Os sabores, sorvidos, num só trago.
Foi um perfume intenso, descrito num livro.
Foi uma história mesmo muito bela,
Acho eu.

É pérfida esta leveza,
Beleza incorpórea
Mal embalsamada
Sem conservar a aspereza
Tampouco as marcas da abrasão.

No fim é uma plenitude de vácuo. Um porte forte, um peito feito a expandir na escuridão. Sufocado sem obstáculos, sem constrição. Em salvas, a agonizar inaudivelmente. Nem ar, nem som, nem mais nada.

É só um peito
no vazio
a aspirar.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Perecível


Que perecível pode ser uma ideia.

Mal sonhada, que doçura. Que aroma avassalador, a penetrar-nos os sentidos e inebriar-nos na sua loucura. Na perfeição das coisas inacabadas, a ideia apaixona-nos e deixa-se namorar. Fica ali entre véus a ser contemplada, adivinhada entre transparências e ilusões, naqueles jogos de sedução e hipnose. Não é moderada e não se deixa moderar. Desrespeita quase sempre a lógica mesmo que more paredes-meias com ela. E desrespeita mesmo o seu mestre — já não — o seu vassalo, como o fazem as paixões.
E é quase sempre uma paixão bruta, abrupta, brota da bruma bramindo mal chega, qual brisa, que se nos abre no peito quente sem se deixar abraçar, que mais ainda que bela, é enfim, breve.

Não começa a amadurecer e quase sempre já se lhe fareja um travo azedo, um vertiginoso receio cresce abafando o encantamento. Uma decepção latente palpita amarga no coração. Quase nunca resiste a uma noite, às vezes nem mesmo a uma sesta breve. Tomada por uma putrefacção insidiosa, que afinal já lá estava desde a génese e que não aflorou à superfície senão quando toda a ideia já estava tragicamente acometida.

Assim o é, quase todas as vezes. Revisitar uma ideia estimada uns dias, uns meses, uns anos depois, é quase sempre penoso. Um certo constrangimento envolve o processo de observar todo o constructo na sua nudez. Sob a lanterna de luz branca dos não apaixonados os detalhes são defeitos e a volúpia são excessos.

E quem diria, que uma ideia podia envelhecer assim, mesmo dentro de nós, protegida na privacidade do nosso pensamento, mesmo sem a oxidação de uma discussão, da verbalização e exposição ao ar. Mas pode, e assim o é, quase todas as vezes.
Todavia, menos vezes do que quase nunca, uma parece vingar. Emerge paulatinamente entre o ruído e sobe o declive do tempo em contraciclo, cada vez mais suave, cada vez mais doce. Amadurece serena, despojadamente simples, desconcertantemente bela.


terça-feira, 15 de maio de 2018

Só por distracção, certamente.

Às vezes estamos prestes a beijar a mulher da nossa vida pela primeira vez e dói-nos imenso um ouvido.

Às vezes estamos no funeral do nosso melhor amigo e estamos cheios de vontade de mijar.

Às vezes até, o nosso filho nasceu e nessa mesma semana temos, ainda assim, de entregar o irs.

Às vezes temos uma das melhores ideias da nossa vida e de seguida o vizinho começa a ouvir música pimba indecorosamente alta.

É uma lástima que o megalómano Destino que cruza duas pessoas, separa outras duas, faz brotar um rebento num útero e outro no pensamento não baixe o volume de uma coluna.

Será o Destino sádico? Será a intendência superior da ordem das coisas adepta do humor non-sense ? Não me parece que características tão mundanas sirvam a uma entidade tão transcendental. Não se coloca tampouco a hipótese de um poder capaz de agir de forma tão magnânima se ver incapaz de intervir em coisas de tão menor calibre. E também não há qualquer dúvida que se afigura uma terrível gestão de recursos a mobilização de tantos meios para criar uma determinada situação e depois desaproveitar tanto a sua potencialidade com falhas em coisas tão mais pequenas. Só por distracção, conclui-se, se justificam estas situações, esta pouca atenção ao detalhe de um Destino que, compreende-se, terá muitos outros assuntos mais relevantes com que se ocupar constantemente.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Meia que ensopada


Chuva onde anda
Pesada no vento,
Fria, mas quente
Serpente aguada,
Via mais quente
Novo quem sente.
Ergueu de repente,
Na talha lavada,
Rajada entoada
E clarão no nada
Da rua dourada.
Ecoa um alado
Ruído no rádio,
Transmite em torrente
Nova de sempre.