domingo, 24 de maio de 2020

Existir

Existir sempre foi mais dissonante do que o pop nos ensinou.

Forte na terça
frágil na quinta 
quantas vezes acordei como um leão
e passei o dia a fugir.
Entre os dias e as gentes
e o que eles gritam,
há uma certa esperança na vida
de ela nos dar não sei o quê
mas que valerá mesmo a pena,
toda a pena,
e esse mantra corre desde lá atrás,
no fundo,
e acompanha-nos 
e há uma altura em que começamos a dar por ele,
a ouvi-lo,
caminhando no seu embalo.

Mas depois vai-se andando,
vai-se andando e o tempo passa quando se anda,
e o tempo que passa também é uma distância.
E essa batida de fundo
esse som magnífico
vai parecendo mais longínquo,
mais difuso,
vai-se andando
mais implausível,
anda-se mais
ousa-se na análise e reconhece-se — mais ridículo.
E chega um dia que dás conta
que há tanto tempo que não o ouves
que não podes garantir se alguma vez ele soou.

*

Gritamos tantas verdades
e tantas mentiras
todas com a mesma convicção.

Nada é certo
mas a probabilidade acumulada do erro
é esmagadora.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Debaixo do mar

Debaixo do mar
há outro mar
corre mais denso
corre profundo.

Debaixo do mar
azul
corre outro mar
magenta
tingido dos séculos

Tingido dos séculos
fragmentos de sangue,
a alma do corpo,
milhões de fragmentos
gotículas ínfimas
a saber a ferro
sangue forjado
fragmentos, fractais, 
perdidos para o mar:
perdidos nas praias
perdidos em terra
lavados pela chuva 
escorridos para os rios
deixados no mar.

Densos
a aglutinarem-se no fundo
nas profundezas
nos abismos submersos
onde escorregam
para o centro da terra
metais fundentes
ferrosos
e rubros.

Século de águas tingidas
repetido do anterior
repetido dos seus pais,
dos seus avós,
até à primeira geração.
Até ao primeiro coração humano
a lançar sangue para as artérias e veias do primeiro corpo,
com as primeiras chagas
de uma tradição milenar.

Séculos de águas tingidas
por grandes guerras,
por minúsculas guerras, 
por dores proporcionais e desproporcionais
(o que importa?)
sangue erodido do corpo
pela agressão de viver
lavado na chuva 
tingindo as águas.

Debaixo do mar
há outro mar
parido das veias.