terça-feira, 26 de setembro de 2017

Cometer, só um bocado.


Cometer um pecado.
Nem tanto. Meio pecado. Cometer só meio pecado. Para não chegar a pecar.
Será que não é correcto? certamente. mas também, caramba, ainda não é errado. ninguém quer discutir ninharias. avancemos, não é errado. é só brincar lá perto do limite. é aí que está o gozo. onde mais?

Começar por cometer meio pecado.
Conhecemo-nos bem. Sabemos até onde é meio pecado. Conhecemo-nos bem e conhecemos bem o limite. Só até meio. até um cagagésimo menos que meio, e arredondará sempre para baixo. Sim, isto é seguro. E interessante. Vamos lá! Que há de mais interessante e até ético que meio pecado? nada. Ora nenhum Homem é santo. É heróico cometer meio pecado. Oh, se é! é um coito interrompido bem sucedido. A robustez do carácter, a determinação imperturbável... é nobre! começamos por aí e por aí ficamos. em meio pecado. nada mais.
— sabemos que não será assim. conhecemo-nos bem.
Será será. será talvez assim. conhecemo-nos bem. nem podemos pensar de outra forma. cometeremos deliberadamente apenas meio pecado. será então talvez assim, está combinado.

Tudo o que acrescer, tudo o que acresce, tudo o que acresceu, foi sem dolo. Sem dolo não há pecado. Toda a gente sabe. Sem dolo. Foi só um virtuoso desequilíbrio. Uma nortada que soprou mais forte, sem se contar. este inverno que até andava tão calmo. Soprou tão forte… e já se sabe, do outro lado a colina escorrega muito.

Portanto: sem dolo.
Sem dolo. Que sem dolo não há pecado.
— Nem prazer.
Merda!
Sem dolo não há prazer. foi um espirro. uma obscenidade involuntária. aos tropeções. Nem deu para a saborear. Uma polução qualquer de um espírito indeciso.
desperdiçar todo este esforço assim...?

Há que manter a intenção então.
Porque a culpa condimenta. E o dolo é o mérito das coisas más. E eu não vendo as minhas medalhas. Muito menos janto sem sal!
A intenção fica.
Mas não a intenção de um pecado inteiro! credo! Apenas a intenção de meio pecado. e a de escorregar depois. é quanto baste. Nunca a intenção de todo um asqueroso pecado. Isso não!

Assumo a culpa só de meio pecado. Aliás, quase meio pecado. isso sim, tive culpa. Isso e de ser pouco cauteloso nas contas, e pronto, está visto, no meio da confusão, os imponderáveis, a distracção, o azar, tudo à mistura, uma pessoa escorrega e quando se dá conta sabe-se lá onde está. Foi uma imprecisão de cálculo este resultado.
Mas por minha vontade foi só meio, nem tanto. Juro.
Eu nunca cometeria deliberadamente um pecado.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Dirty words

Nunca calhou

O maior pavor da minha mãe era a droga, que eu me metesse naquilo, como a melhor amiga da juventude que, depois de já ter idade para ter juízo, começou a experimentar umas coisas pouco católicas. 
- A Cintinha, foi sempre muita dada a modernices e a provocar e transgredir, desde novinha, ainda andávamos no colégio, ela já era espevitada. Na faculdade, meteu-se para lá nas filosofias e nos existencialismos. Mas vá, até fez tudo direitinho e acabou o curso, normalmente, foi só quando já dava aulas que a comecei a ver com umas companhias incertas. Nos primeiros tempos ninguém adivinhava, até casou, ainda fui ao casamento dela e ao batizado da filha, parecia-me bem, nessa altura, mas eu fui vendo-a cada vez menos, ela aparecia cada vez menos, desaparecia cada vez mais, ofuscava-se cada vez mais, morria cada vez mais... Às tantas já não usava camisolas de manga curta, nem naqueles dias mais quentes de Verão, às vezes uma tineira insuportável e aqueles bracinhos todos tapadinhos. E, depois, esquelética, pálida... Comentava-se que tinha vergonha de mostrar os braços negros. Tinha a menina aí uns dez anitos quando começou a ir passar umas temporadas a casa dos avós. Tinha a menina aí uns doze anitos quando a mãe se foi. Foi uma tristeza, ter de explicar à criança... E achas que não tentaram salvá-la? O que aqueles pais sofreram! Por isso, eu que saiba! Vocês têm a mania que sabem muito, que são rebeldes. Eu que saiba que te metes numa dessas, não vou andar a minha vida toda a preocupar-me e com medo de te encontrar para aí numa vala obscura. É uma guerra perdida, e eu tenho a minha vida e não tenho saúde para isso. Bem que escusas de voltar a casa! - no fim, já vociferava a ladainha, decorada há largos anos. Provavelmente, construída no momento em que soube que ia ser mãe. Dizia-mo muito solenemente, muito séria, e se de meras ameaças se tratava, não tenho como saber, mas lá que soava convicta... 
Era o seu único medo, acima de tudo, o único disparate comum em adolescentes que, verdadeiramente, a assustava. Sendo eu meia parvinha e sem grande juízo, urgia iluminar-me a consciência, amiúde, não fosse eu esquecer-me. Nunca se incomodou a atemorizar-me com a maternidade precoce, ela sabia que esse problema estava fora de questão, que eu não corria o risco de alguém reparar em mim, nem por acidente. Só mesmo a droga pode bater a qualquer porta, para aspirar a romances era preciso ter outros encantos que a minha mãe estava certa de eu não possuir. Sempre era uma dor de cabeça a menos.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Quando a Rosa tiver um momentinho...

- Quando a Rosa tiver um momentinho... Não, não tenha pressa, acabe isso com calma, temos tempo. Pois, isso ainda lhe vai dar trabalho, há-de estar peganhento, calculo. Foi o Coronel, ontem à noite, exaltou-se, num repente, e verteu a bebida no soalho. Valha-nos o Senhor! A Rosa tenha paciência, já sabe como ele é. O remédio é esfregar, pois, que mais se há-de fazer! Mas depois, se a Rosa perceber alguma coisa destas maquinetas do Inferno, veja se me consegue ajudar aqui. Sabe, os meus antigos colegas, que continuam lá no Tribunal, volta e meia, ainda me pedem umas opiniões, quando se lhes depara um caso mais bicudo. Sabe, Rosa, a lei tem meandros e nuances manhosas, é preciso muita experiência para a interpretar. E eu já vi muita coisa nesta vida, nem imagina! E, portanto, os meus colegas, com toda a consideração e estima que têm por mim - e eu por eles, diga-se, e eu por eles... - ainda recorrem ao meu parecer. Daí estar aqui, desde manhã cedinho, a tentar redigir uma pequena explanação do meu ponto de vista. Mas não me está a ser fácil. Nada fácil. E eu tanto lhe pedi, não foi por falta de tentativa, àquela teimosa, que me deixasse tratar dos meus próprios documentos, de vez em quando, que também nunca tive muito tempo a perder, mas de vez em quando, custava-lhe ter me deixado escrever um relatório e imprimi-lo? Aquelas moças secretárias nunca nos deixavam fazer nada que fosse da sua competência, não queriam perder o estatuto. Ai de quem se chegasse a uma máquina de escrever, e quando vieram os computadores foi a mesma tormenta. Tinham medo de ficar obsoletas, as finórias. Tantas vezes lhe disse, Beatriz faça-me o favor, mostre-me lá como lida com essa geringonça, como é que faço um textinho à maneira e depois o mando cuspir ali na outra engenhoca, além?


por Paul Hogarth

A Rosa acha que ela se dignou a ensinar-me? Nunca, só no fim, nos últimos meses, quando já tinha posto o papéis para a reforma, é que a Dona Susana, uma rapariguita mais nova que lá andava, essa acho que já tinha um cursito qualquer tirado à noite, porque essa até bonecos já sabia fazer no computador. E essa, é que me esteve a mostrar, à pressa, estas coisinhas básicas de escrever, de fazer umas contitas e enviar e-mails. A Rosa sabe enviar mensagens pelo computador? Olhe que me entretenho muito com isto, volta e meia, recebo umas anedotas e uns vídeos engraçados, dos meus colegas da Relação, da malta da Tropa e de alguns rapazes que estudaram comigo no Liceu. Até lhe mostrava o video que recebi ontem à noite do Coronel - ele também sabe usar isto porque a esposa aprendeu na Universidade Sénior - mas é capaz de ser um pouco brejeiro para uma senhora, ainda mais casada, como a Rosa. 
Agora, eu também podia ir para a Universidade Sénior, aprender a jogar às cartas no digital, para as noites em que o Coronel não pode cá vir, mas aquilo está carregadinho de mulheres viúvas e carentes. E se eu não casei em novo, também não há-de ser agora, não está claro? E pior que essas desgraçadas, abandonadas pelo marido por forças da ceifeira-mor, são as solteironas. Irra! Que chatas! E acha que aquilo é paixão de forma alguma? É nada, elas vêm é fisgadas à minha pensão, que é considerável, por saberem que fui juíz. Não se pode ter um pé de meia, Rosinha, olhe, não seja tonta, aproveite a vida enquanto pode e tem saúde. Logo que acabe o seu serviço, ponha-se a andar que ainda apanha a matiné... Antes, veja só se me sabe guardar aqui este ficheiro, a minha pasta dos assuntos sérios tem o meu nome: Osvaldo

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"Fábula em onze jornadas, tragicómica, sorte de rapsódia pagã em bemol."

Resultado de imagem para aquilino ribeiro faunos
"Não, não cabia no seu entendimento que a essas babilónias afamadas, onde as mulheres tomam banho em água de rosas para amaciar a cútis, se pintam como deusas do Oriente, cheiram a nardo e a mirra, andam seminuas pelas praças, estudam ciências e artes, versejam, falam vários idiomas, são, numa palavra, torrões de açúcar e cidadelas de sabedoria, de natureza a encarecer a dificuldade da conquista e galardoar o mérito do conquistador, preferisse aquelas piolheiras, onde o mulherio que é virgem o menos que cheira é a raposinhos, e o experimentado, ao bodum. Para mais, brutinhas como patas e instintivas como poldras."
Aquilino Ribeiro in Andam Faunos Pelos Bosques 

domingo, 8 de janeiro de 2017

Dissonância Magnética

Labéis esses dogmas imemoriais, quem os desenhou não experimentou este mundo, não os adequou a cada dia que passa - há séculos que mudam muita coisa, outros nem tanto - as imposições àvant-garde, ainda por testar, potencialmente perigosas de tão imberbes, falta estudá-las face a cada um de nós. Conhece cada um dos meus vizinhos ou todos os meus antípodas, geográficos ou idealísticos? Não nos conhecem, nunca os sentiram. Nunca viram ninguém. As certezas absolutas tendem a toldar a vista. A obstar direções matam-se descobertas.
Andamos por cá há muito tempo, mas nascemos ontem, hoje de manhã. Escutemos o mínimo necessário dos anciãos e aventuremos na nossa linguagem, virgens abordagens de quem não foi ensinado a temer e ainda não aprendeu que vai morrer. 
Uma moral menos hereditária e mais destilada da sensibilidade, naturalmente, adquirida, roubada de uma conceção benigna do mundo.
Não procuremos, ansiosamente, leis universais, tange-me com a tua identidade, modulando-me a consciência, não é vidro que a compõe, é uma argila curiosa e absorvente. De cada vez que alguém me atravessa permaneço eu, meu sólido eu que não se transfigura com um sopro, mas vai filtrando a beleza que passa. Nada sei nada de, verdadeiramente, relevante mas, quem sabe, juntos, não sejamos um pouco mais luminosos, sem iluminismos. Comovo-me com a tua singularidade despojada. Não disfarces nada. 

Por Choi Xooang