quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Dirty words

Nunca calhou

O maior pavor da minha mãe era a droga, que eu me metesse naquilo, como a melhor amiga da juventude que, depois de já ter idade para ter juízo, começou a experimentar umas coisas pouco católicas. 
- A Cintinha, foi sempre muita dada a modernices e a provocar e transgredir, desde novinha, ainda andávamos no colégio, ela já era espevitada. Na faculdade, meteu-se para lá nas filosofias e nos existencialismos. Mas vá, até fez tudo direitinho e acabou o curso, normalmente, foi só quando já dava aulas que a comecei a ver com umas companhias incertas. Nos primeiros tempos ninguém adivinhava, até casou, ainda fui ao casamento dela e ao batizado da filha, parecia-me bem, nessa altura, mas eu fui vendo-a cada vez menos, ela aparecia cada vez menos, desaparecia cada vez mais, ofuscava-se cada vez mais, morria cada vez mais... Às tantas já não usava camisolas de manga curta, nem naqueles dias mais quentes de Verão, às vezes uma tineira insuportável e aqueles bracinhos todos tapadinhos. E, depois, esquelética, pálida... Comentava-se que tinha vergonha de mostrar os braços negros. Tinha a menina aí uns dez anitos quando começou a ir passar umas temporadas a casa dos avós. Tinha a menina aí uns doze anitos quando a mãe se foi. Foi uma tristeza, ter de explicar à criança... E achas que não tentaram salvá-la? O que aqueles pais sofreram! Por isso, eu que saiba! Vocês têm a mania que sabem muito, que são rebeldes. Eu que saiba que te metes numa dessas, não vou andar a minha vida toda a preocupar-me e com medo de te encontrar para aí numa vala obscura. É uma guerra perdida, e eu tenho a minha vida e não tenho saúde para isso. Bem que escusas de voltar a casa! - no fim, já vociferava a ladainha, decorada há largos anos. Provavelmente, construída no momento em que soube que ia ser mãe. Dizia-mo muito solenemente, muito séria, e se de meras ameaças se tratava, não tenho como saber, mas lá que soava convicta... 
Era o seu único medo, acima de tudo, o único disparate comum em adolescentes que, verdadeiramente, a assustava. Sendo eu meia parvinha e sem grande juízo, urgia iluminar-me a consciência, amiúde, não fosse eu esquecer-me. Nunca se incomodou a atemorizar-me com a maternidade precoce, ela sabia que esse problema estava fora de questão, que eu não corria o risco de alguém reparar em mim, nem por acidente. Só mesmo a droga pode bater a qualquer porta, para aspirar a romances era preciso ter outros encantos que a minha mãe estava certa de eu não possuir. Sempre era uma dor de cabeça a menos.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Quando a Rosa tiver um momentinho...

- Quando a Rosa tiver um momentinho... Não, não tenha pressa, acabe isso com calma, temos tempo. Pois, isso ainda lhe vai dar trabalho, há-de estar peganhento, calculo. Foi o Coronel, ontem à noite, exaltou-se, num repente, e verteu a bebida no soalho. Valha-nos o Senhor! A Rosa tenha paciência, já sabe como ele é. O remédio é esfregar, pois, que mais se há-de fazer! Mas depois, se a Rosa perceber alguma coisa destas maquinetas do Inferno, veja se me consegue ajudar aqui. Sabe, os meus antigos colegas, que continuam lá no Tribunal, volta e meia, ainda me pedem umas opiniões, quando se lhes depara um caso mais bicudo. Sabe, Rosa, a lei tem meandros e nuances manhosas, é preciso muita experiência para a interpretar. E eu já vi muita coisa nesta vida, nem imagina! E, portanto, os meus colegas, com toda a consideração e estima que têm por mim - e eu por eles, diga-se, e eu por eles... - ainda recorrem ao meu parecer. Daí estar aqui, desde manhã cedinho, a tentar redigir uma pequena explanação do meu ponto de vista. Mas não me está a ser fácil. Nada fácil. E eu tanto lhe pedi, não foi por falta de tentativa, àquela teimosa, que me deixasse tratar dos meus próprios documentos, de vez em quando, que também nunca tive muito tempo a perder, mas de vez em quando, custava-lhe ter me deixado escrever um relatório e imprimi-lo? Aquelas moças secretárias nunca nos deixavam fazer nada que fosse da sua competência, não queriam perder o estatuto. Ai de quem se chegasse a uma máquina de escrever, e quando vieram os computadores foi a mesma tormenta. Tinham medo de ficar obsoletas, as finórias. Tantas vezes lhe disse, Beatriz faça-me o favor, mostre-me lá como lida com essa geringonça, como é que faço um textinho à maneira e depois o mando cuspir ali na outra engenhoca, além?


por Paul Hogarth

A Rosa acha que ela se dignou a ensinar-me? Nunca, só no fim, nos últimos meses, quando já tinha posto o papéis para a reforma, é que a Dona Susana, uma rapariguita mais nova que lá andava, essa acho que já tinha um cursito qualquer tirado à noite, porque essa até bonecos já sabia fazer no computador. E essa, é que me esteve a mostrar, à pressa, estas coisinhas básicas de escrever, de fazer umas contitas e enviar e-mails. A Rosa sabe enviar mensagens pelo computador? Olhe que me entretenho muito com isto, volta e meia, recebo umas anedotas e uns vídeos engraçados, dos meus colegas da Relação, da malta da Tropa e de alguns rapazes que estudaram comigo no Liceu. Até lhe mostrava o video que recebi ontem à noite do Coronel - ele também sabe usar isto porque a esposa aprendeu na Universidade Sénior - mas é capaz de ser um pouco brejeiro para uma senhora, ainda mais casada, como a Rosa. 
Agora, eu também podia ir para a Universidade Sénior, aprender a jogar às cartas no digital, para as noites em que o Coronel não pode cá vir, mas aquilo está carregadinho de mulheres viúvas e carentes. E se eu não casei em novo, também não há-de ser agora, não está claro? E pior que essas desgraçadas, abandonadas pelo marido por forças da ceifeira-mor, são as solteironas. Irra! Que chatas! E acha que aquilo é paixão de forma alguma? É nada, elas vêm é fisgadas à minha pensão, que é considerável, por saberem que fui juíz. Não se pode ter um pé de meia, Rosinha, olhe, não seja tonta, aproveite a vida enquanto pode e tem saúde. Logo que acabe o seu serviço, ponha-se a andar que ainda apanha a matiné... Antes, veja só se me sabe guardar aqui este ficheiro, a minha pasta dos assuntos sérios tem o meu nome: Osvaldo

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"Fábula em onze jornadas, tragicómica, sorte de rapsódia pagã em bemol."

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"Não, não cabia no seu entendimento que a essas babilónias afamadas, onde as mulheres tomam banho em água de rosas para amaciar a cútis, se pintam como deusas do Oriente, cheiram a nardo e a mirra, andam seminuas pelas praças, estudam ciências e artes, versejam, falam vários idiomas, são, numa palavra, torrões de açúcar e cidadelas de sabedoria, de natureza a encarecer a dificuldade da conquista e galardoar o mérito do conquistador, preferisse aquelas piolheiras, onde o mulherio que é virgem o menos que cheira é a raposinhos, e o experimentado, ao bodum. Para mais, brutinhas como patas e instintivas como poldras."
Aquilino Ribeiro in Andam Faunos Pelos Bosques