segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Este Estado de Modorra Só Pode Culminar em Hecatombe


Senhora Dona Cândida saltou os bons dias essenciais para não interromper as suas lamentações que haviam começado ainda antes de ter transposto a porta. A Senhora Dona Cândida não tem uma alegria na vida há uma ou duas décadas, assim à vontade, sem exagerar. O senhorio teima em querer despejá-la, custe o que custar, da casa onde vive desde sempre. Onde foi tão feliz com o marido, tão bom homem, que Deus o tenha. Para construir mais umas quantas lojas e mais uma residencial ou lá como lhe chamam agora.
Um hostel, Dona Cândida.
Agora, com a minha idade querem pôr-me na rua, e vou para onde, quem me diz? Nunca lhe faltei com a renda, não tem razão de queixa de mim. A minha tensão disparou, anda nos píncaros, ele há-de matar-me antes de mais nada. Primeiro, disse-me que me mudasse para uma casa para senhoras da minha idade, em Queluz, imagine! Diz que trata de tudo e lá estarei bem melhor, com gente que olhe por mim. Que todas as tardes nos sentam a pintar florzinhas e vemos filmes do Vasco Santana, aos domingos, intercalados com a ginástica. Alguma vez! Um dia também há-de ser velho e estimo que o tratem da mesma maneira. Disse-lhe isto, assim, na cara. Ele riu-se. Mas eu teimei que não ia para um mortuário. 
Agora, lembrou-se de me juntar a um velho, mais velho que eu, acabado, quase defunto, que mora onde Judas perdeu as botas - um largo mimoso, diz ele. Uma mulher decente obrigada a ouvir estes impropérios. Ai que a Dona Cândida vive tão sozinha, estava tão melhor com alguma companhia, a casa é bem jeitosa, grande, com três quartos airosos. Não pense que têm de dormir na mesma cama. Nada disso, o senhor só quer alguma companhia, nestes últimos dias. A pensão dele também não é miserável. E piscou-me o olho. 
Já viu a minha  desgraça, desrespeitada com esta minha idade.
Não sei quanto tempo mais a velhota se demorou a enunciar desgraças aos meus ouvidos gastos, mas eles desconectaram-se da minha atenção e os meus olhos desfocaram, concentrada no meu sofrimento, num plano para escapar dali. Prestes a rebentar, deliro com a imagem de mim própria a injuriar cada um deles, tão alto quanto a capacidade dos meus pulmões, ligeiramente asmáticos, permite e tão esganiçada quanto a minha garganta aguenta. Não haveria de escapar nenhum daqueles velhos lentos, desconfiados, chatos, incapazes de se fazerem entender e de me ouvir. Não pouparia uma dessas donas de casa desesperadas, desaustinadas, atordoadas porque o filho, obeso desde os três anos de idade, está prestes a sair de casa, porque o marido não a vê desde a altura em que o menino ainda era magrinho, porque as irmãs é que estão bem e porque as amigas cada vez lhe telefonam menos. E esses parasitas, agarrados, com demasiado tempo livre, com todo o tempo livre, que me vêm aqui exigir atenção, a cheirar mal, dentes podres, e reclamam da vida, da conjuntura, do diabo a quatro, como se eu quisesse saber. 
Gritar-lhes que vão à bugiar, insultá-los um a um, depois em conjunto, num espetáculo tão ultrajante que não permita regresso, nem redenção. Sem culpa. A minha vergonha esfumada, tal como a minha compaixão se esfumou, por aí, num destes dias.  
E fechar a maldirporta, exagerada, teatral, tragicamente, com toda a força que eu não tenho, agitando os alicerces e ameaçando os vidros, em jeito de despedida. 


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