quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pendular

     Ainda com a sensação da almofada de flanela no rosto e a estridência do alarme do despertador a tinir no ouvido, Laidinha trota pelo passeio, desengonçada como só tu, acusaria o paizinho se a visse, naquela madrugada de inverno, a entrar na relojoaria. Era deselegante, não por ser anafada, não por ter os membros revestidas a gordura, triplo queixo e barriga flácida, era deselegante, por pura deselegância. À saída das entranhas da mãe, logo perdeu o centro de gravidade e o norte do juízo. Ainda jovem e magra já desengonçava rua fora e tropeçava chão abaixo. Desgraça explícita do paizinho, vergonha dissimulada da mãezinha.
     A chave na fechadura não cumpre o seu papel, cansa-lhe a mão e acorda a tendinite latente, que lá desce desde o ombro para estalar, agudamente, no pulso. Pousa as sacas no chão molhado e dedica-se, exclusivamente, a garantir que insere a chave certa e que exerce a rotação devida, como o Sr. Carlos lhe explicara. Não queria acordá-lo de propósito, àquelas horas, abre-te lá maldita! Abriu. Dentro da loja o ar está ainda mais frio que lá fora, Laidinha fricciona os braços e as mãos e acredita que aquece, é uma rapariga fácil de convencer.
     Luzes ligadas e tudo a postos, não vá alguém, por engano, aparecer e demorar-se, de barriga prostrada sobre o balcão, Laidinha começa a puxar o lustro aos relógios da vitrine. Não há vivalma na rua, se houvesse também não se veria através do nevoeiro cerrado, mas já sente o cheiro a estrugido da tasca, essa sim com fregueses em abundância, abundados em vinho tinto e pigarro, amiúde cuspido para o chão, amiúde cuspindo uns nos outros, porque é assim que se resolvem as escaramuças. 
     Laidinha não se metia com esses homens, há mais de 50 anos que aprendera a não se meter com os homens buliçosos do outro lado da rua. Laidinha, de mamas espalhadas sobre o balcão, puxava lustro aos relógios, ao ouro e à prata. Quando se cansa, entretém-se com o corta unhas, que desde pequena que os seus cabelos e unhas crescem rápido e tem de estar atenta. As unhas não podem chegar ao branco e o cabelo, agora branco, está sempre certinho ao nível do maxilar para não dar trabalho a lavar. Estes hábitos houveram sido incutidos pela mãe, mas Laidinha não se lembrava, talvez os achasse regras universais, ou talvez não achasse nada, rigorosamente nada, que não era rapariga de achar muita coisa. 
     Sabia que lhe cabia limpar a mercadoria, especialmente em dias de feira - costumava esquecer-se desses dias, mas agora tinha-os todos rodeados no calendário. Limpar a mercadoria e a loja era com ela, mas compor as máquinas não, não te atrevas a tocar na maquinaria, minha santa, desconchavas-me isto tudo e é o cabo dos trabalhos para reparar, os consertos são comigo! Sim paizinho, são só consigo. Não paizinho, já nada é consigo, há-de me perdoar, mas a dois metros da superfície onde andamos já nada é consigo, nem ir ao quiosque comprar o jornal, nem a sueca aos sábados de manhã, nem contar a caixa ao fim do dia, nem gritar comigo por dar mal os trocos, nem resmungar com a mãezinha por lhe ter dado uma filha burra, nem reclamar com o Sr. Carlos por encobrir as minhas asneiras. A propósito, é ele agora, paizinho, agora é o Sr. Carlos a reparar os relógios todos, deixa-os tão certinhos como dantes, o mesmo tic-tac metálico, a mesma rotação de ponteiros, na mesma direção do costume e até as horas são as mesmas, consigo ou sem si. As horas são as mesmas para o relógio de cuco na parede e para o relógio no meu pulso, que não trabalha sem a pilha que me esqueço de substituir, mas que de outra forma diria a mesmíssima coisa para a qual foi fabricado, é o que fazem as máquinas. Até para os bêbedos à espera do pequeno-almoço, a hora de hoje é igual à hora de ontem, sem tirar, nem pôr. Mas para mim, elas parecem crescer, achar não acho porque não sou grande coisa a pensar, mas sinto que as horas de hoje demoram mais a acabar do que dantes. Dantes a mãezinha estava aqui, na cadeira atrás do balcão, a falar para mim, a cantar em sobreposição à voz do rádio, a tecer-me camisolas para o inverno e eu nunca tinha frio, a dar-me biscoitos de limão e cevada para o lanche e a achar-me bonita. 
     Lá fora não passa ninguém, quando passar estará a caminho de algum outro lugar que Laidinha desconhece, com certeza para lá do caminho entre a sua casa e a loja. Podia ter ficado a dormir até que o sol a acordasse, mais suavemente que o despertador, mas Laidinha não sabia, porque a mamã fora-se antes de lho revelar. 

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