domingo, 19 de setembro de 2021

Nestes tempos distantes

Eu sempre que tinha de estudar

escrevia poemas

porque temos de tirar alguma coisa cá de dentro

para caberem outras.


É bonita, não é, esta ideia? De que um poema é uma coisa que já existe cá dentro e que só a temos que encontrar e de a parir.

Excerto retirado do meio de um poema que não pode ser publicado por não atingir o critério mínimo de qualidade


merda de ideias

merda de translação, isto estava tão mais bonito

na minha cabeça.

Aqui está menos poético

mais obstipado

talvez a vida seja assim

menos poética que o faccioso flow dos nossos pensamentos

e emoções

nós é que nunca os olhamos bem.

E ainda nos importunamos

com não ser belo o suficiente

se calhar era melhor arte

era uma fotografia mais honesta

um fruto sincero

— para quê tirar os caixotes do lixo do enquadramento

se a verdade é que estão lá?

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Verão

Apanhei uma onda 

e a música estava mesmo boa

era indie rock

cantado pelo gilberto gil

numa língua morta, antiga

que se enrolava mesmo bem com a espuma das ondas e

abracadabra

apercebi-me

que magia

estar ali no meio de uma imagem tao bonita

pintada pela boca do artista

e era engraçado

que a luz do sol brilhava debaixo da água

e emergia essa luz

e cá fora já era de noite e nem tinha notado

porque era daquelas noites quentes

que se não se estiver atento só se dá conta das horas já ao amanhecer

mergulhei então sem perder tempo

para ver aquela luz

e quando cheguei ao fundo do copo

tinha uma enorme pedra de gelo

e em cima dela um esquimó

a dizer que com o aquecimento global agora vivia-se melhor era nos congeladores das famílias europeias

e eu disse

que os frigoríficos americanos eram maiores.


terça-feira, 4 de maio de 2021

domingo, 18 de abril de 2021

Posse

A posse é uma troca.

Parece unívoca, mas não é, é uma troca.

Quando se possui algo ganha-se um direito mas perde-se um grau de liberdade.

Quando nos movemos num estado prévio, pueril e casto — que nunca chega realmente a existir — movemo-nos livres, equidistantes de tudo, porque não há referencial. A posse estabelece uma posição relativa, que deve ser mantida, no sentido de garantir esse mesmo direito transacionado.

Nós, seres desenhados na selva, projetados para a escassez, estamos intrinsecamente dispostos a abdicar da liberdade — um dos poucos bens abundantes na era pré-moderna — pelo direito de propriedade. Mas a posse paga uma renda alta. A posse exige manutenção e tem onerosos custos alocados à preservação do referencial. A posse é um saco pesado e grande e uma preocupação com ele ainda maior.

A posse e o desejo de exclusiva propriedade são intrínsecos e também por isso poderosos. São anti-pluralistas e são anti-democráticos, pelo menos na assembleia interna de cada um de nós. Ofuscam. Falam num tom demasiado alto. Não dão espaço à expressão de outros pensamentos no referencial cognitivo-emocional.


A posse é ubíqua.

A única cura é o eremitério.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Ténis para Surdos-Mudos

Embora não pareça, o Ténis é um desporto que vale sobretudo pela música.

Percebi isso, certa vez, quando ouvi um surdo-mudo dizer que o ténis não passava de duas pessoas a jogar raquetes.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Motivo Poético

Escreve-se proporcionalmente pouca poesia sobre felicidade ou alegria.

Ainda bem.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Auto-sinceridade, metodologia 2

           

    Acompanhe, meditando as palavras: 

Quero fazer o que é melhor para mim.

Tenho uma crença do que será o melhor para mim.

Faço uma coisa diferente disso.


    Conclua:

O que quiser.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Teoria dos Fios

Na matriz em que se monta a nossa existência

há uma sinfonia cósmica,

um elegante ensemble de cordas

que vibram

e são tão resistentes

que são capazes de manter suspenso este universo

como uma camisa pregada num estendal de outono.


Eu só queria agarrar-me a uma.

Qual liana.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Auto-sinceridade, metodologia

Como a escolha era impossível
Lancei um dado
Para tomar uma decisão.

Como não saiu o que queria,
Lancei de novo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Parecido

Éramos tão parecidos
que parecia 
veja-se bem
até mentira.
Quer em aspecto quer em graça
qualquer aspecto
veja-se bem
nos fluía
igual.
Mais até que igual
simétrico
como uma dança
e a dança
veja-se bem
porque é bela.
Se bela for.

Então
vendo-me bem
e já até demais
saí da frente do espelho
unilateralmente.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A descoberta e o assombro são ordinariamente mal tratados

A expressão de descoberta e assombro é ordinariamente mal tratada, com uma indignação que não tolera a demora, e urgentemente retribuída com a incontestável prova de superioridade que é ter chegado primeiro a qualquer coisa, numa resposta deserta, incapaz de pasmo algum perante algo que, sim, é maravilhoso mas que já caducou a novidade, não havendo lugar para observações redundantes, já está tudo dito.


O que eu sei é impensável ignorar.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

No sentido ao lado

Há quem veja numa guitarra o corpo de uma mulher

Isso para além de ser um salto modesto

tem o verbo errado.

Não é ver.

É ouvir.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sociologia de trazer por casa

Nasci em Marco de Canaveses, terra pequena, não tinha cinema, nem teatro, nem concertos. 

Na minha turma havia três mulatos e uma menina com trissomia. Ninguém nunca lhes chamou nomes por isso. A dona do meu infantário era negra, tia de uma colega minha, eu não a achava diferente, achava-a mais morena. É assim que eu sei que não nasci racista, é uma coisa que me vai acontecendo, uns pensamentos que entram sem querer. 

Fiquei admirada quando o Rajesh me contou que, criado em Lisboa, nunca teve amigos na escola, que todos eram maus para ele, inclusivé um ou outro professor.

Ele é francamente normal para quem não teve amigos até à faculdade. No Marco talvez ele fosse exótico e isso lhe garantisse um grupo de amigos no recreio. Em Lisboa ele não encontrou amigos, e em Lisboa há teatros e museus.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Os olhos em que vão

 Os olhos em que vão

                            estas imagens

são cegos

        por dentro.


Os olhos em que vão

                            morrer

                                    estas imagens

são mudos

           mudos.


Os olhos em que vão

                        passando depressa

                                    estas paisagens

as bermas de estrada

          a cadência dos postes

                   a calçada incerta

                            as fachadas

                                   cada porta

caminham rápido

        passada larga

nervosa e contemplativa

        (dá para ser?)

             (dá, mas gera angústia)

Esses olhos

      são uma porta

           fechada

               sem querer.