sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
Ele Fala Pelos Cotovelos Porque Sempre Morou Sozinho, Mas a Rosa Não Faça Caso
O escritório, quase tão imaculado quanto a cozinha e a saleta, não fosse por uns papéis espalhados e aparas de borracha branca na secretária, não requeria os seus serviços, de primeira categoria que, aliás, referências não lhe faltavam e, por isso mesmo, tantos vizinhos a tivessem recomendado ao Senhor Doutor, mas naquela casa tão pouco usada, Rosa ficava sem saber como ocupar-se.
Atrás de si, o Dr. Osvaldo relembrava que a Rosa está à vontade, eu ando sempre por aqui, se precisar de alguma coisa, é dizer.
A mulher agarrou-se a sacudir o pó dos livros das estantes e de um ou outro bibelot que se lhe atravessasse no caminho. O dono da casa sentara-se à varanda a contemplar os transeuntes, de olho na rua e com o ouvido na Rosa, lamentou que Sandra tivesse querido ir embora. Já me tinha habituado a ela, sabe? Uma pessoa afeiçoa-se. E parece-me que não pensou bem, quis casar-se, naturalmente, mas disse-lhe que se mudassem os dois para cá, é uma casa tão grande, cabiam perfeitamente, mais os pequenos que haverão de ter, se Deus quiser. Foi teimosa!
Rosa anuía, distraidamente, sacudindo as almofadas do cadeirão. O homem tentava acender o cachimbo não obstante o vento que lhe frustrava a combustão dos fósforos. Com a primeira baforada, indagou se o marido de Rosa era pessoa que apreciasse uma partida de xadrez, ou de bridge, por vezes falta-nos o quarto elemento para as cartas. O Coronel do quarto traseiras e o neto são amantes de jogatina e, ocasionalmente, batem-me à porta, ao fim da tarde, quando o rapaz chega das aulas. De maneira que, se ele gostar, é só aparecer, escusa de se sentir na obrigação de trazer seja o que for, aqui nunca faltam umas cervejas e uns pistácios, se gostar de uísque também tenho uma série de garrafinhas que me foram oferecendo, ao longo dos anos, lá na Relação. Por colegas e amigos só, nada de ofertas nubladas que a mim nunca me untaram as mãos, e poucos foram os que se atreveram a tentar, por conta da minha renomada retidão. Poucos se poderão gabar como eu, bem pode perguntar por aí. Portanto, se o marido da Rosa achar piada, não faça cerimónias, nem vermute lhe faltará que o Coronel costuma trazê-lo lá de cima, também. Ele aprecia bem mais do que eu, que só bebo, cordialmente, quando tenho companhia. Agora, a mulher do Coronel já me confidenciou, a pobrezinha, que ele não tem restrições de espécie alguma, qualquer hora do dia lhe parece boa para encher o copo. Esses homens que andaram na guerra nunca estão, no âmago, em paz. Por muito bem-dispostos que se apresentem. Sempre há uma chispa que lhes acorda a memória. Graças ao Altíssimo que nunca calhou de eu chumbar em Coimbra e que nunca me tenham despachado para as Áfricas, com a espingarda numa mão e o rosário de minha mãe na outra. Se lá tivesse posto os pés, Rosa, e visto metade do que aqueles desgraçados viram, não morava aqui sozinho, agora que me aposentei, tinha voltado para a aldeia, ainda lá está a minha irmã mais nova, ela tomava conta de mim. Mas eu tenho uma cabeça sã e muitos amigos por cá que me querem bem, de vez em quando ainda nos juntamos para almoçar ou quê. Mas eu não me preocupo, se um dia a saúde me falhar, a Sãozinha cuida de mim, ela põe-me o creme nos joanetes como ninguém, sem fazer cócegas, e fá-lo de bom grado, é boa moça e eu sempre fui bom irmão, há anos que lhes trato do IRS, que eles com contas não são muito certos. Em casa da Rosa quem trata?
domingo, 25 de dezembro de 2016
quinta-feira, 22 de dezembro de 2016
Pendular
Ainda com a sensação da almofada de flanela no rosto e a estridência do alarme do despertador a tinir no ouvido, Laidinha trota pelo passeio, desengonçada como só tu, acusaria o paizinho se a visse, naquela madrugada de inverno, a entrar na relojoaria. Era deselegante, não por ser anafada, não por ter os membros revestidas a gordura, triplo queixo e barriga flácida, era deselegante, por pura deselegância. À saída das entranhas da mãe, logo perdeu o centro de gravidade e o norte do juízo. Ainda jovem e magra já desengonçava rua fora e tropeçava chão abaixo. Desgraça explícita do paizinho, vergonha dissimulada da mãezinha.
A chave na fechadura não cumpre o seu papel, cansa-lhe a mão e acorda a tendinite latente, que lá desce desde o ombro para estalar, agudamente, no pulso. Pousa as sacas no chão molhado e dedica-se, exclusivamente, a garantir que insere a chave certa e que exerce a rotação devida, como o Sr. Carlos lhe explicara. Não queria acordá-lo de propósito, àquelas horas, abre-te lá maldita! Abriu. Dentro da loja o ar está ainda mais frio que lá fora, Laidinha fricciona os braços e as mãos e acredita que aquece, é uma rapariga fácil de convencer.
Luzes ligadas e tudo a postos, não vá alguém, por engano, aparecer e demorar-se, de barriga prostrada sobre o balcão, Laidinha começa a puxar o lustro aos relógios da vitrine. Não há vivalma na rua, se houvesse também não se veria através do nevoeiro cerrado, mas já sente o cheiro a estrugido da tasca, essa sim com fregueses em abundância, abundados em vinho tinto e pigarro, amiúde cuspido para o chão, amiúde cuspindo uns nos outros, porque é assim que se resolvem as escaramuças.
Laidinha não se metia com esses homens, há mais de 50 anos que aprendera a não se meter com os homens buliçosos do outro lado da rua. Laidinha, de mamas espalhadas sobre o balcão, puxava lustro aos relógios, ao ouro e à prata. Quando se cansa, entretém-se com o corta unhas, que desde pequena que os seus cabelos e unhas crescem rápido e tem de estar atenta. As unhas não podem chegar ao branco e o cabelo, agora branco, está sempre certinho ao nível do maxilar para não dar trabalho a lavar. Estes hábitos houveram sido incutidos pela mãe, mas Laidinha não se lembrava, talvez os achasse regras universais, ou talvez não achasse nada, rigorosamente nada, que não era rapariga de achar muita coisa.
Sabia que lhe cabia limpar a mercadoria, especialmente em dias de feira - costumava esquecer-se desses dias, mas agora tinha-os todos rodeados no calendário. Limpar a mercadoria e a loja era com ela, mas compor as máquinas não, não te atrevas a tocar na maquinaria, minha santa, desconchavas-me isto tudo e é o cabo dos trabalhos para reparar, os consertos são comigo! Sim paizinho, são só consigo. Não paizinho, já nada é consigo, há-de me perdoar, mas a dois metros da superfície onde andamos já nada é consigo, nem ir ao quiosque comprar o jornal, nem a sueca aos sábados de manhã, nem contar a caixa ao fim do dia, nem gritar comigo por dar mal os trocos, nem resmungar com a mãezinha por lhe ter dado uma filha burra, nem reclamar com o Sr. Carlos por encobrir as minhas asneiras. A propósito, é ele agora, paizinho, agora é o Sr. Carlos a reparar os relógios todos, deixa-os tão certinhos como dantes, o mesmo tic-tac metálico, a mesma rotação de ponteiros, na mesma direção do costume e até as horas são as mesmas, consigo ou sem si. As horas são as mesmas para o relógio de cuco na parede e para o relógio no meu pulso, que não trabalha sem a pilha que me esqueço de substituir, mas que de outra forma diria a mesmíssima coisa para a qual foi fabricado, é o que fazem as máquinas. Até para os bêbedos à espera do pequeno-almoço, a hora de hoje é igual à hora de ontem, sem tirar, nem pôr. Mas para mim, elas parecem crescer, achar não acho porque não sou grande coisa a pensar, mas sinto que as horas de hoje demoram mais a acabar do que dantes. Dantes a mãezinha estava aqui, na cadeira atrás do balcão, a falar para mim, a cantar em sobreposição à voz do rádio, a tecer-me camisolas para o inverno e eu nunca tinha frio, a dar-me biscoitos de limão e cevada para o lanche e a achar-me bonita.
Lá fora não passa ninguém, quando passar estará a caminho de algum outro lugar que Laidinha desconhece, com certeza para lá do caminho entre a sua casa e a loja. Podia ter ficado a dormir até que o sol a acordasse, mais suavemente que o despertador, mas Laidinha não sabia, porque a mamã fora-se antes de lho revelar.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2016
9 em Cada 10 Vezes, é Mesmo Só Ar
Intervalo que envolve,
quilómetros a perder de vista,
ou
ténue vidro embaciado,
o que tem é tão espesso
e denso, ele absorve
(ou vazio, incomunica),
toldando o lá
avistado de cá.
Passado tumultuado,
em contínua fuga de si
mantendo-se a par,
ligeiramente atrasado,
ligeiramente adiantado,
experimenta caminhar.
Indo em ar próprio,
sobre próprio chão,
segundo a quebra de paradigma,
faz-se e existe.
Faltando o molde,
não há despiste.
Livre, desenvolve.
A cortina eterniza,
mas
diáfana quanto pode,
sem tua ênfase,
é uma brisa.
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Versar as Mais Íntimas Aflições
Sempre que o bolso
do casaco
me devolve um gancho,
há um um brinco
que me cai,
pelo ralo abaixo.
Sumiu-me o batom
do cieiro,
fui comprar um igual,
o lábio inferior já gretado,
e aquele primeiro,
rolou detrás do candeeiro,
em excelente estado.
Houvera um armário
de infinitas gavetas,
onde um objeto,
em cada uma,
metas.
Na primeira,
um índice
das posições,
prevenindo este vórtice
de perdas
e repetições.
Oh, pudera eu
guardar
no meu braço,
todo os totós do cabelo,
tão menor o cansaço,
de buscá-los
noutro mundo paralelo.
do casaco
me devolve um gancho,
há um um brinco
que me cai,
pelo ralo abaixo.
Sumiu-me o batom
do cieiro,
fui comprar um igual,
o lábio inferior já gretado,
e aquele primeiro,
rolou detrás do candeeiro,
em excelente estado.

de infinitas gavetas,
onde um objeto,
em cada uma,
metas.
Na primeira,
um índice
das posições,
prevenindo este vórtice
de perdas
e repetições.
Oh, pudera eu
guardar
no meu braço,
todo os totós do cabelo,
tão menor o cansaço,
de buscá-los
noutro mundo paralelo.
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Não Falo Estrangeiro

Anita vai às aulas de informática ouvir falar sobre a história do Linux, MULTICs, Unix, Posix, Atérix, Obélix, Panoramix... É difícil manter a cara séria, nadando num lago de siglas, uma pessoa agarra-se ao que pode.
sábado, 1 de outubro de 2016
quarta-feira, 14 de setembro de 2016
Zheng Yiqiang
Continua a cintilar, seu diamante doido.
Aurora 2
Acrylic on canvas
55 1/10 × 70 9/10 in
140 × 180 cm
Aurora 3
Acrylic on canvas
59 1/10 × 74 4/5 in
150 × 190 cm
segunda-feira, 12 de setembro de 2016
And I Always Sleep With My Guns When You're Gone
#ongoingmeltdownseries
There's a shark in the pool
And a witch in the tree
A crazy old neighbor and he's been watching me
And there's footsteps loud and strong coming down the hall
There's a shark in the pool
And a witch in the tree
A crazy old neighbor and he's been watching me
And there's footsteps loud and strong coming down the hall
Este Estado de Modorra Só Pode Culminar em Hecatombe

Um hostel, Dona Cândida.
Agora, com a minha idade querem pôr-me na rua, e vou para onde, quem me diz? Nunca lhe faltei com a renda, não tem razão de queixa de mim. A minha tensão disparou, anda nos píncaros, ele há-de matar-me antes de mais nada. Primeiro, disse-me que me mudasse para uma casa para senhoras da minha idade, em Queluz, imagine! Diz que trata de tudo e lá estarei bem melhor, com gente que olhe por mim. Que todas as tardes nos sentam a pintar florzinhas e vemos filmes do Vasco Santana, aos domingos, intercalados com a ginástica. Alguma vez! Um dia também há-de ser velho e estimo que o tratem da mesma maneira. Disse-lhe isto, assim, na cara. Ele riu-se. Mas eu teimei que não ia para um mortuário.
Agora, lembrou-se de me juntar a um velho, mais velho que eu, acabado, quase defunto, que mora onde Judas perdeu as botas - um largo mimoso, diz ele. Uma mulher decente obrigada a ouvir estes impropérios. Ai que a Dona Cândida vive tão sozinha, estava tão melhor com alguma companhia, a casa é bem jeitosa, grande, com três quartos airosos. Não pense que têm de dormir na mesma cama. Nada disso, o senhor só quer alguma companhia, nestes últimos dias. A pensão dele também não é miserável. E piscou-me o olho.
Já viu a minha desgraça, desrespeitada com esta minha idade.
Não sei quanto tempo mais a velhota se demorou a enunciar desgraças aos meus ouvidos gastos, mas eles desconectaram-se da minha atenção e os meus olhos desfocaram, concentrada no meu sofrimento, num plano para escapar dali. Prestes a rebentar, deliro com a imagem de mim própria a injuriar cada um deles, tão alto quanto a capacidade dos meus pulmões, ligeiramente asmáticos, permite e tão esganiçada quanto a minha garganta aguenta. Não haveria de escapar nenhum daqueles velhos lentos, desconfiados, chatos, incapazes de se fazerem entender e de me ouvir. Não pouparia uma dessas donas de casa desesperadas, desaustinadas, atordoadas porque o filho, obeso desde os três anos de idade, está prestes a sair de casa, porque o marido não a vê desde a altura em que o menino ainda era magrinho, porque as irmãs é que estão bem e porque as amigas cada vez lhe telefonam menos. E esses parasitas, agarrados, com demasiado tempo livre, com todo o tempo livre, que me vêm aqui exigir atenção, a cheirar mal, dentes podres, e reclamam da vida, da conjuntura, do diabo a quatro, como se eu quisesse saber.
Gritar-lhes que vão à bugiar, insultá-los um a um, depois em conjunto, num espetáculo tão ultrajante que não permita regresso, nem redenção. Sem culpa. A minha vergonha esfumada, tal como a minha compaixão se esfumou, por aí, num destes dias.
E fechar a maldirporta, exagerada, teatral, tragicamente, com toda a força que eu não tenho, agitando os alicerces e ameaçando os vidros, em jeito de despedida.
domingo, 11 de setembro de 2016
sábado, 10 de setembro de 2016
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
*Onomatopeia de Meditação*
Quatro ou cinco minutos de Tool sabem sempre a poucochinho.
Manda o Lúcifer Pastar Camelos
![]() |
Arcanjo Miguel de Guido Reni, 1636 |
A tentar ser a melhor versão possível.
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domingo, 4 de setembro de 2016
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