Senhora Dona Cândida saltou os bons dias essenciais para não interromper as suas lamentações que haviam começado ainda antes de ter transposto a porta. A Senhora Dona Cândida não tem uma alegria na vida há uma ou duas décadas, assim à vontade, sem exagerar. O senhorio teima em querer despejá-la, custe o que custar, da casa onde vive desde sempre. Onde foi tão feliz com o marido, tão bom homem, que Deus o tenha. Para construir mais umas quantas lojas e mais uma residencial ou lá como lhe chamam agora.
Um hostel, Dona Cândida.
Agora, com a minha idade querem pôr-me na rua, e vou para onde, quem me diz? Nunca lhe faltei com a renda, não tem razão de queixa de mim. A minha tensão disparou, anda nos píncaros, ele há-de matar-me antes de mais nada. Primeiro, disse-me que me mudasse para uma casa para senhoras da minha idade, em Queluz, imagine! Diz que trata de tudo e lá estarei bem melhor, com gente que olhe por mim. Que todas as tardes nos sentam a pintar florzinhas e vemos filmes do Vasco Santana, aos domingos, intercalados com a ginástica. Alguma vez! Um dia também há-de ser velho e estimo que o tratem da mesma maneira. Disse-lhe isto, assim, na cara. Ele riu-se. Mas eu teimei que não ia para um mortuário.
Agora, lembrou-se de me juntar a um velho, mais velho que eu, acabado, quase defunto, que mora onde Judas perdeu as botas - um largo mimoso, diz ele. Uma mulher decente obrigada a ouvir estes impropérios. Ai que a Dona Cândida vive tão sozinha, estava tão melhor com alguma companhia, a casa é bem jeitosa, grande, com três quartos airosos. Não pense que têm de dormir na mesma cama. Nada disso, o senhor só quer alguma companhia, nestes últimos dias. A pensão dele também não é miserável. E piscou-me o olho.
Já viu a minha desgraça, desrespeitada com esta minha idade.
Não sei quanto tempo mais a velhota se demorou a enunciar desgraças aos meus ouvidos gastos, mas eles desconectaram-se da minha atenção e os meus olhos desfocaram, concentrada no meu sofrimento, num plano para escapar dali. Prestes a rebentar, deliro com a imagem de mim própria a injuriar cada um deles, tão alto quanto a capacidade dos meus pulmões, ligeiramente asmáticos, permite e tão esganiçada quanto a minha garganta aguenta. Não haveria de escapar nenhum daqueles velhos lentos, desconfiados, chatos, incapazes de se fazerem entender e de me ouvir. Não pouparia uma dessas donas de casa desesperadas, desaustinadas, atordoadas porque o filho, obeso desde os três anos de idade, está prestes a sair de casa, porque o marido não a vê desde a altura em que o menino ainda era magrinho, porque as irmãs é que estão bem e porque as amigas cada vez lhe telefonam menos. E esses parasitas, agarrados, com demasiado tempo livre, com todo o tempo livre, que me vêm aqui exigir atenção, a cheirar mal, dentes podres, e reclamam da vida, da conjuntura, do diabo a quatro, como se eu quisesse saber.
Gritar-lhes que vão à bugiar, insultá-los um a um, depois em conjunto, num espetáculo tão ultrajante que não permita regresso, nem redenção. Sem culpa. A minha vergonha esfumada, tal como a minha compaixão se esfumou, por aí, num destes dias.
E fechar a maldirporta, exagerada, teatral, tragicamente, com toda a força que eu não tenho, agitando os alicerces e ameaçando os vidros, em jeito de despedida.
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