quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Ensaio número 2 - Auto-biografia de mentiras convenientes

Real homem vivo

    se tudo não for um equívoco.

Internacional

    objector da limitada filosofia dos limites de fronteira.

Não político antropomorfo

    mas animal político

    por natureza da espécie humana.

Não anglófono, estrangeiro, não francês

    por serem as línguas mais importantes num tempo em que não estudou.

Obtido por geração espontânea

    ou pela teoria vigente na altura em que isto se ler.

Id do seu Ego

    salvou-se a si mesmo num grande naufrágio

    ao dividir-se em dois.

(decididamente) Não decidido

    não.

Panteísta

    nos dias bons.

Pagão do ateísmo

    nos anos maus.

Romântico poliglota

    sem língua nativa.

Espiritual

    também geométrico

    [a dupla anti-hélice!].

Não colecionador

    por falta de espaço.

Anarquista

    incumpridor das regras do anarquismo.

Envergonhado pela não originalidade do último verso

    ainda assim permanece.

Não organizado.

Não viável

    como todos somos

    mas é erro de paralaxe.

Conhecido pelo seu olfacto

    e no entanto não ladra.

Dupla negação de si mesmo.

Assiste ao tumulto do dia

    numa passividade vegetal

E às vezes no silêncio da noite,

    muda a realidade,

    exercendo melodia e luz.

sábado, 8 de agosto de 2020

Ensaio número 1 - Sozinho

Real homem vivo

não politico 

não anglófono 

não francês

não bossa nova

mas que pena 

se fosse verdade

não estagnado

não coerente 

não viável mas é erro de paralaxe como com toda a gente

ou quase toda

não europeu

grisalho gentil gentio

prolífico

não era áspero

nem ficou

não se cansa

que se saiba

sorriso fácil e grande

não se repetiu demasiado

para o tanto que escreveu

não viu deus

mas viu leões

e às vezes 

no silêncio da noite

fica a imaginar-nos aos dois

sozinho.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

sábado, 20 de junho de 2020

Exercício de mal estar

O quanto cala rompe o peito
e engolidas as lágrimas escorrem pelo mesmo buraco a céu aberto
que lhe vai sorvendo a débil luz no olhar.
Denso
silêncio absorvente ecoando 
numa torrente que lavra na cabeça e desagua na boca
que não pode articular
a espiral que diverge a consciência mas se concentra
em grito sufocado nunca escutado,
mas que prestando alguma atenção poderia palpar-se.

A névoa gelada desce em redor, em arrastão
que abate tetos sobre o chão que é caminho
das horas vazias de cabeça insuflada
pelo quente que está esta lenta noite sem sol.

Pesam as coisas grandes e as mais pequenas -
que não têm um grama a menos,
só ocupam menos dor.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Convicção ou Resiliência ou Fé

Caminhando obstinadamente
acabamos por chegar ao ponto
de estarmos fartos de caminhar.

Nem todas as falências são por falta de determinação e dos seus para-sinónimos.
À semelhança de quase todas as narrativas sobre-simplistas, é presunçosa e curta essa visão.
É um cobertor que não chega aos pés.
Às vezes nem aos joelhos que se querem dobrados.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Redundante e Sem Sentido

Hoje o absurdismo pesa-me mil toneladas
E mais do que ser esmagado por este calhau
Custa não haver uma razão para isso.

sábado, 6 de junho de 2020

Não Há Beleza Como a Tosca

Não há beleza como a tosca.
Uma pétala em falta.
Um pardal comum.
Um muro de pedra
erodido.
O cabelo desalinhado
soprado no vento.

Não há beleza como a tosca.
Um encanto que é o do mato
olhado como um jardim.
Uma pinha aberta em flor.
A cor da madeira,
o arranjo dos seus nós.
Os nós dos dedos,
finos,
trémulos por vezes.
Uma voz e os medos
finos,
trémula por vezes.

Não há beleza como a Toscana
e eu que nunca lá fui!
Um vestido primaveril numa manhã de domingo

e as manhãs de domingo sempre com sol.

Uma cicatriz pequena escondida algures

e uma história imprecisa que se avançou.

As flores ao regaço
e o regaço florido.


Uma ousadia hesitada em timidez.
Um travo de estática a confirmar uma música antiga.
Ingenuidade e astúcia,
sorrisos fáceis e desafetados,
sorrisos fáceis e de fácil análise.
Um jeito lasso, laxo,
lânguidos corpos
lânguidas tardes,
sol, erva, brisa, simples, pouco.

Não há beleza como a tosca.
Haverá sequer outra?


domingo, 24 de maio de 2020

Existir

Existir sempre foi mais dissonante do que o pop nos ensinou.

Forte na terça
frágil na quinta 
quantas vezes acordei como um leão
e passei o dia a fugir.
Entre os dias e as gentes
e o que eles gritam,
há uma certa esperança na vida
de ela nos dar não sei o quê
mas que valerá mesmo a pena,
toda a pena,
e esse mantra corre desde lá atrás,
no fundo,
e acompanha-nos 
e há uma altura em que começamos a dar por ele,
a ouvi-lo,
caminhando no seu embalo.

Mas depois vai-se andando,
vai-se andando e o tempo passa quando se anda,
e o tempo que passa também é uma distância.
E essa batida de fundo
esse som magnífico
vai parecendo mais longínquo,
mais difuso,
vai-se andando
mais implausível,
anda-se mais
ousa-se na análise e reconhece-se — mais ridículo.
E chega um dia que dás conta
que há tanto tempo que não o ouves
que não podes garantir se alguma vez ele soou.

*

Gritamos tantas verdades
e tantas mentiras
todas com a mesma convicção.

Nada é certo
mas a probabilidade acumulada do erro
é esmagadora.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Debaixo do mar

Debaixo do mar
há outro mar
corre mais denso
corre profundo.

Debaixo do mar
azul
corre outro mar
magenta
tingido dos séculos

Tingido dos séculos
fragmentos de sangue,
a alma do corpo,
milhões de fragmentos
gotículas ínfimas
a saber a ferro
sangue forjado
fragmentos, fractais, 
perdidos para o mar:
perdidos nas praias
perdidos em terra
lavados pela chuva 
escorridos para os rios
deixados no mar.

Densos
a aglutinarem-se no fundo
nas profundezas
nos abismos submersos
onde escorregam
para o centro da terra
metais fundentes
ferrosos
e rubros.

Século de águas tingidas
repetido do anterior
repetido dos seus pais,
dos seus avós,
até à primeira geração.
Até ao primeiro coração humano
a lançar sangue para as artérias e veias do primeiro corpo,
com as primeiras chagas
de uma tradição milenar.

Séculos de águas tingidas
por grandes guerras,
por minúsculas guerras, 
por dores proporcionais e desproporcionais
(o que importa?)
sangue erodido do corpo
pela agressão de viver
lavado na chuva 
tingindo as águas.

Debaixo do mar
há outro mar
parido das veias.

segunda-feira, 30 de março de 2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

O Cavalo Dado

Que jogo de fortuna ou azar o teria ali encostado?
Já ninguém se lembrava de onde tinha vindo nem quem o trouxera. Mas era um equídeo magro, com os lados côncavos da desnutrição e com grande dificuldade em se alimentar porque nem dentes tinha — e claro ninguém os tinha olhado.
Também não fazia grande trabalho na quinta e tinha muita dificuldade em locomover-se. Normalmente para se mexer tinha de ser sempre lançado por alguém, devido à sua forma cúbica.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Quis Ser Infinito

Quis ser infinito
Quis ser uma semi-recta
Quis ser eterno
estender-me para sempre
e mais um pouco.
Quis vencer a morte
Cruzar o limite do silêncio
e continuar a falar.
A minha voz 
A falar
A falar
A falar
Ou um eco (eco eco)
Ou eco de eco (de eco de eco eco)
Dela.
Da minha voz.
A ouvir-se por aí, para além do tempo.
Tentei esticar-me. Dedos dendríticos como raízes, a infiltrarem-se para lá de mim no mundo.
Medo!
A ânsia de abarcar cada vez mais não é senão o sintoma do medo,
é a súplica de ter onde fincar as unhas
quando formos inexoravelmente puxados para a sombra.
Tentei ser poeta. 
Tentei fazer a música. Metafórica e real. 
Tentei descobrir algo. Descobri que é difícil.
Tentei ser bom.
Mas nem a minha poesia, nem a minha música, nem as minhas boas ações se pareciam reproduzir e assegurar uma descendência infinita.
Tentei loucuras:
com os resultados que se conhecem.
Tentei amar
Tentei que me amassem.
E os objectos do amor também eram mortais e finitos.
Então quis conhecer Deus.
Chegar à beira dele. 
Falar - lhe
em canal directo e privado — Iluminado.
Quis mostrar Deus — Profeta.
Até que quis ser Deus.
Tentei destilar-me.
Fugir à diluição a que se resume a minha individualidade entre oceanos de individualidades.
Quis purificar esse extrato
Puro
Precioso
Valoroso
que eu sei ser.
Só não vi bem ainda em quê. Nem ninguém viu. Mas eu sei que está lá.
Sinto-o tão bem, tão nitidamente, quase se vê, à luz do meu viés egocêntrico — oh, qual farol! 
Purificar e perpetuar essa fragrância, que o mundo tem direito a usufruir. Que é até imoral se não a der.
E só quando concretizei o esforço de chegar cada vez mais perto dessa minha essência é que percebi.
Era uma caixa, e dentro dessa caixa uma outra caixa, e dentro outra, e aí outra ainda, e aí dentro outra sequência como esta, e mais uma volta, e finalmente na última caixa:
nada.
E nada não dura. Muito menos para sempre.

Mas nada é o denominador que compõe o infinito. E o infinito não existe senão numa conceptualização, abstracta, quimérica, na mente de seres efémeros como eu.

Eu sou o que divide por zero.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Metanálise da Morte

Morremos sempre sozinhos.
Uma mão dada têm os afortunados, na hora última, a aconchegá - los.
Estão sozinhos na mesma.
Podemos viver com companhia, por vezes. Mas morremos sempre sozinhos. Podemos ter alguns corpos, físicos, a acenar do cais. Chorosos lenços de adeus erguidos ao vento. Mas no navio, de mão dada com a solidão, não vai mais ninguém. A travessia fazêmo - la sozinhos. Em terra ficam, os que ficam em Terra.
Não importa a que resquícios físicos achemos que nos agarramos. Do outro lado não há matéria que se leve. Nem notícias que se tragam.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

O Pouco Tempo que o Tempo Tem

Sabe-se que a vida é curta porque estamos sempre a ter de partir demasiado cedo e sempre a chegar demasiado tarde.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Vida Banal

Nasceu.
E nunca morreu.

A Falácia de Gertrude Stein

uma rosa é uma rosa é uma rosa
e poesia é poesia e às vezes é prosa
e às vezes também é rosa
ou mesmo azul
ou outras plantas
e às tantas às tantas
o que é belo é belo há é que vê-lo
e o resto no invisível também pode sê-lo
há é que vê-lo
há é que vê-lo!

sábado, 30 de novembro de 2019

E a vida foi acontecendo

E a vida foi acontecendo
e nada mais foi simples
nada mais foi puro
ou evidente.

As certezas que eram muitas levantaram-se
e deram lugar só
à certeza da perpétua dúvida.
perpétuo tremor ao indicar.
a intenção com folga
que não aponta bem para nenhum lado.

O bom caminho passou a ter maus pedaços
e para nosso maior pesar
os caminhos mais reles ornamentaram-se de coisas boas
e interessantes
a tal ponto de serem indistintos.

Assustador como a vida se aproximou tanto da biologia.
Incerta. Probabilística. Básica.
Como gerações e gerações de ratos
a foderem uns com os outros,
ninhada após ninhada,
a fugir da extinção,
rumo a lugar nenhum.
Nós também.

Cada passo um passo mais longe do início
no êxtase da fuga só às vezes nos apercebemos que a fuga não é o plano.
cada passo um passo roubado à morte, dizia-se,
e a morte a rir-se que nem uma perdida
se tiver boca para isso.

Biologia!
Menino, tem o ADN necessário para vingar nesta selva e estabelecer-se no topo da pirâmide.
No topo, sim!
Não, isso não podemos garantir.
Pode, pode claro, pode ser comido por um leão,
sem dúvida.
mas não se preocupe, provavelmente morrerá de uma forma bem mais estúpida.
Mas está equipado com o último grito de programação genética,
está, vem com a última versão
homo sapiens sapiens.

A vida também tem sido disto
poder ser o rei da selva
mas viver obcecado no pavor de sentar o rabo no insecto errado.

Mas onde é que eu ía?
Na vida,
que foi acontecendo — isso!

e a vida foi acontecendo
e o nevoeiro foi-se instalando
e com esse breu é que se viu bem
que os limites que desvaneceram
nunca lá tinham mesmo estado.

e a vida foi acontecendo
e o que era bom ficou ainda melhor quando revisto
e o que era mau ficou bom também
e o contrário disto também se verificou profusamente
e as parcelas eram já tantas
que a matemática se complicou a um ponto
que decretaram:
       já não havia computação que chegasse.
para aquela conta
para uma resposta.
e qualquer resposta que se dê
sabemos
que só sabemos
é que está errada.