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segunda-feira, 9 de março de 2020

O Cavalo Dado

Que jogo de fortuna ou azar o teria ali encostado?
Já ninguém se lembrava de onde tinha vindo nem quem o trouxera. Mas era um equídeo magro, com os lados côncavos da desnutrição e com grande dificuldade em se alimentar porque nem dentes tinha — e claro ninguém os tinha olhado.
Também não fazia grande trabalho na quinta e tinha muita dificuldade em locomover-se. Normalmente para se mexer tinha de ser sempre lançado por alguém, devido à sua forma cúbica.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A melhor conversa do mundo

Perguntei a Deus se ele existia.
Ele respondeu:
— Não, não existo.
Fez-se um silêncio constrangedor e ficou-se por aquilo. Não o tenho por mentiroso.

Claro que a melhor conversa do mundo teria de ser entre o homem e Deus.
A segunda melhor é entre dois golfinhos mas não a vou transcrever hoje.




P.S.: dois golfinhos tatuados.
                                Numa nádega.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A estupidez e o surrealismo

Num tabuleiro de xadrez algures na Índia, onde o pai do xadrez nasceu, está um puro-sangue lusitano à conversa com São Nicolau:
— Parece aborrecido... — comenta o equídeo como quem pergunta o que se passa.
— Nem vou estar aqui a contar-lhe toda a história, mas em resumo é isto: detesto gente estúpida! — reclama, desconcertado, o bispo com um barrete vermelho.
— Não despreze a estupidez — contrapõe o cavalo — que ela é o surrealismo dos pobres (pobres de espírito claro está)!

Entretanto, e sem os outros se aperceberem, passava um peão, partidário dos pobres de espírito, fazendo piruetas consecutivas, julgando-se, porventura, um pião.
Terá ouvido a conversa e gritou-lhes:
— E sabem o que é o surrealismo? — não esperou uma resposta — É a estupidez, só que cuspida da boca dos presunçosos! Só ganha o título quando lhe vão ver na etiqueta a origem!
Logo se gerou grande confusão entre São Nicolau e o peão, mas o burburinho não teve muito tempo de se espalhar. A rainha saiu dos seus aposentos e comeu prontamente o bispo. E restaurou-se o silêncio.
Claro que pelas vielas mais sombrias do tabuleiro se ouviam comentários de que o estado deveria ser laico e era um mau princípio aquele tipo de promiscuidade entre o clero e os governantes... mas há sempre más línguas.

Ao fundo, do outro lado do tabuleiro, do alto da sua perspicácia, dizia uma Torre que este texto tanto era uma auto-crítica como simultaneamente a sua defesa!

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Silvestre, o melhor escritor do mundo

Depois de se ver envolvido num escândalo de doping por uso de LSD num concurso de escrita criativa, Silvestre teve de encarar o julgamento e a punição atribuídas.
Foi condenado a passar 2 anos no complexo com a estadia mais cara da cidade. Lá podia fazer tudo o que quisesse, excepto escrever. Excepto escrever e criar memórias (não fosse ele produzir e guardar mentalmente os textos, estava sempre num estado de amnésia anterógrada induzido).
O conhecimento público da decisão judicial causou uma vaga enorme de contestação social.
Todas as árvores se deslocaram ao palácio da justiça para se manifestarem contra a decisão. Levaram placas de plástico e metal com palavras de protesto (por razões óbvias vai contra a conduta moral de qualquer árvore usar cartolinas, papeis ou placas de madeira). Aquele que inicialmente tinha sido pensado como um protesto pacífico acabou por se desenrolar num cenário bem mais violento, com algumas plantas carnívoras tendo mesmo comido vários agentes da autoridade. Centenas de plantas acabaram detidas, — entenda-se portanto — postas em vasos.
Os protestos duraram semanas e muitas das árvores chegaram a criar raízes, acabando por se fazer um jardim na frente do tribunal.
As árvores mostravam-se contra a decisão por convicções religiosas. Explicando: Silvestre era considerado uma divindade para as árvores porque ele lhes concedia, através dos seus livros, uma vida depois da morte. Uma reencarnação em papel, em papel onde corria a vida de uma boa história (o termo reencarnação deveria ser apenas usado para animais e nem todos, que nem todos dão bife).
A Prisão-Hotel, o sítio onde deveria cumprir a sentença, funcionava como prisão para as pessoas felizes e estalagem de luxo para as pessoas infelizes (funcionava portanto ao contrário do resto do mundo, que no fundo é uma gigante estalagem de luxo para uma pessoa feliz).
Na Prisão-Hotel ninguém cria memórias. Os infelizes não se lembram do sofrimento que sentem, os felizes não recordam a felicidade. O esquecimento é talvez o maior deflator do valor do valor dos sentimentos.
Silvestre pediu recurso da decisão por legitimidade religiosa para o uso da substância. Ora após um referendo global telepático (é assim que se decide tudo na democracia perfeita) todos os votos foram em branco, porque nenhum cidadão se sentia devidamente informado para tomar uma posição (de resto isto é semelhante ao que acontece em votações por cá, mas aqui as pessoas votam na mesma no clube partido preferido). Ora, para "desempatar", foi dada ao escritor a oportunidade de votar.
Escolheu ser condenado, porque a existência de mártires dá aquele carisma às religiões...