Há quem veja numa guitarra o corpo de uma mulher
Isso para além de ser um salto modesto
tem o verbo errado.
Não é ver.
É ouvir.
Há quem veja numa guitarra o corpo de uma mulher
Isso para além de ser um salto modesto
tem o verbo errado.
Não é ver.
É ouvir.
Nasci em Marco de Canaveses, terra pequena, não tinha cinema, nem teatro, nem concertos.
Na minha turma havia três mulatos e uma menina com trissomia. Ninguém nunca lhes chamou nomes por isso. A dona do meu infantário era negra, tia de uma colega minha, eu não a achava diferente, achava-a mais morena. É assim que eu sei que não nasci racista, é uma coisa que me vai acontecendo, uns pensamentos que entram sem querer.
Fiquei admirada quando o Rajesh me contou que, criado em Lisboa, nunca teve amigos na escola, que todos eram maus para ele, inclusivé um ou outro professor.
Ele é francamente normal para quem não teve amigos até à faculdade. No Marco talvez ele fosse exótico e isso lhe garantisse um grupo de amigos no recreio. Em Lisboa ele não encontrou amigos, e em Lisboa há teatros e museus.
Os olhos em que vão
estas imagens
são cegos
por dentro.
Os olhos em que vão
morrer
estas imagens
são mudos
mudos.
Os olhos em que vão
passando depressa
estas paisagens
as bermas de estrada
a cadência dos postes
a calçada incerta
as fachadas
cada porta
caminham rápido
passada larga
nervosa e contemplativa
(dá para ser?)
(dá, mas gera angústia)
Esses olhos
são uma porta
fechada
sem querer.
Jasmim,
és só um nome
não és uma flor
és um nome de flor.
Não sei como és,
não sei a que cheiras,
e se sei
não sei saber.
Se eu já te vi
jasmim,
foi então bonito
jasmim,
porque te vi só a ti,
sem o teu nome,
sem mais nada.
Já fomos livres
jasmim,
se calhar.
Tu eras só flor,
eu era só ver-te.
Livres.
Anónimos.
A floresta via-nos debaixoOs pés grandes e as cabeças pequenasE temia que o nosso poder fosse desproporcional à nossa responsabilidade.
Acerca-te de mim, beleza — rezei.
E procedi com tal delicadeza
Como se estivesse a atrair um gato.
Morde-me.
Come os meus velhos restos.
Alguém tem de acabar
esta refeição.
Alguém será o último
a servir-se.
Doo o meu término
sem reservas
e até com um negro orgulho
aos teus sanguíneos caninos.
As minhas primeiras palavras foram ditas no útero.
Na altura pelos ultrassons da ecografia ouvia-se "penta, paenta", que não era uma referência à minha idade gestacional nem ao sistema decimal, porque ainda não tinham chegado à vida intra-uterina os progressos da revolução francesa, mas era apenas eu a tentar dizer "Placenta".
Na minha primeira infância tive um acidente automóvel em que era eu o condutor. Fali a minha conta-poupança. Tirei um year off que foi inédito na primária. Juntei-me ao único partido que me aceitou mesmo não me revendo no anarco-capitalismo. Deixei de ter tempo para o desporto e engordei.
Aos treze anos tive pela primeira vez a visão esclarecida da minha existência como um todo, como quem olha de longe, de um miradouro alto. Percebi que estava exatamente a meio da minha vida. Tinha 13 anos de passado e 13 anos de futuro.
Na adolescência tive uma crise de meia idade e foi aí que comecei a tomar drogas para a potência sexual, e dessas para as outras foi um passo fácil demais. Acreditem que de tomar 3 comprimidos de Viagra por noite a picar uma veia com heroína mal se dá por ela. De modo que a dependência de estupefacientes até chegou em tempo apropriado, no início da fase adulta.
Escrevi as minhas memórias aos 23 anos, donde já constaram os meus 3 divórcios, o meu baixote topo de carreira e a educação de uma filha adotiva até à maioridade (na altura adotámos uma adolescente de 16 anos, a Cláudia, mas para nós, e para o namorado dela, será sempre a nossa "bebé"). O resto do conteúdo foi substancialmente inventado porque já tinha começado a manifestar os primeiros sinais de demência, e a memória falhava como as notas de 500, que entretanto deixaram de existir.
Antes do quarto de século deixei feito o meu testamento, que foi sobretudo um exercício de doação emocional, porque pouco mais havia a distribuir. Preparei-me para repousar e fiz as minhas pazes com Deus e com os homens.
Hoje, 50 anos volvidos, conto já 76 anos e estou relativamente pouco carcomido, para a idade. Pouco mais fiz na vida desde essa data, mas tenho vivido despreocupado, e isso é deleitoso.
Acerca-te de mim beleza — rezei.
E procedi com a mesma softness
As if i was luring a cat.
Real homem vivo
se tudo não for um equívoco.
Internacional
objector da limitada filosofia dos limites de fronteira.
Não político antropomorfo
mas animal político
por natureza da espécie humana.
Não anglófono, estrangeiro, não francês
por serem as línguas mais importantes num tempo em que não estudou.
Obtido por geração espontânea
ou pela teoria vigente na altura em que isto se ler.
Id do seu Ego
salvou-se a si mesmo num grande naufrágio
ao dividir-se em dois.
(decididamente) Não decidido
não.
Panteísta
nos dias bons.
Pagão do ateísmo
nos anos maus.
Romântico poliglota
sem língua nativa.
Espiritual
também geométrico
[a dupla anti-hélice!].
Não colecionador
por falta de espaço.
Anarquista
incumpridor das regras do anarquismo.
Envergonhado pela não originalidade do último verso
ainda assim permanece.
Não organizado.
Não viável
como todos somos
mas é erro de paralaxe.
Conhecido pelo seu olfacto
e no entanto não ladra.
Dupla negação de si mesmo.
Assiste ao tumulto do dia
numa passividade vegetal
E às vezes no silêncio da noite,
muda a realidade,
exercendo melodia e luz.
Real homem vivo
não politico
não anglófono
não francês
não bossa nova
mas que pena
se fosse verdade
não estagnado
não coerente
não viável mas é erro de paralaxe como com toda a gente
ou quase toda
não europeu
grisalho gentil gentio
prolífico
não era áspero
nem ficou
não se cansa
que se saiba
sorriso fácil e grande
não se repetiu demasiado
para o tanto que escreveu
não viu deus
mas viu leões
e às vezes
no silêncio da noite
fica a imaginar-nos aos dois
sozinho.
e as manhãs de domingo sempre com sol.
Uma cicatriz pequena escondida algures
e uma história imprecisa que se avançou.
As flores ao regaço