quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Urge

Urge mungir da vida

A sua essência.

 

Antes que seque. 

Fora de Tempo

As minhas primeiras palavras foram ditas no útero.

Na altura pelos ultrassons da ecografia ouvia-se "penta, paenta", que não era uma referência à minha idade gestacional nem ao sistema decimal, porque ainda não tinham chegado à vida intra-uterina os progressos da revolução francesa, mas era apenas eu a tentar dizer "Placenta". 

Na minha primeira infância tive um acidente automóvel em que era eu o condutor. Fali a minha conta-poupança. Tirei um year off que foi inédito na primária. Juntei-me ao único partido que me aceitou mesmo não me revendo no anarco-capitalismo. Deixei de ter tempo para o desporto e engordei.

Aos treze anos tive pela primeira vez a visão esclarecida da minha existência como um todo, como quem olha de longe, de um miradouro alto. Percebi que estava exatamente a meio da minha vida. Tinha 13 anos de passado e 13 anos de futuro.

Na adolescência tive uma crise de meia idade e foi aí que comecei a tomar drogas para a potência sexual, e dessas para as outras foi um passo fácil demais. Acreditem que de tomar 3 comprimidos de Viagra por noite a picar uma veia com heroína mal se dá por ela. De modo que a dependência de estupefacientes até chegou em tempo apropriado, no início da fase adulta.

Escrevi as minhas memórias aos 23 anos, donde já constaram os meus 3 divórcios, o meu baixote topo de carreira e a educação de uma filha adotiva até à maioridade (na altura adotámos uma adolescente de 16 anos, a Cláudia, mas para nós, e para o namorado dela, será sempre a nossa "bebé"). O resto do conteúdo foi substancialmente inventado porque já tinha começado a manifestar os primeiros sinais de demência, e a memória falhava como as notas de 500, que entretanto deixaram de existir.

Antes do quarto de século deixei feito o meu testamento, que foi sobretudo um exercício de doação emocional, porque pouco mais havia a distribuir. Preparei-me para repousar e fiz as minhas pazes com Deus e com os homens.

Hoje, 50 anos volvidos, conto já 76 anos e estou relativamente pouco carcomido, para a idade. Pouco mais fiz na vida desde essa data, mas tenho vivido despreocupado, e isso é deleitoso.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

La Beauté comme un chat

Acerca-te de mim beleza — rezei.

E procedi com a mesma softness

As if i was luring a cat.

domingo, 20 de setembro de 2020

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Acrasia

Consciente e racional
surgiu
naturalmente
a melhor opção para mim
 — a de maior benefício.

E sem nenhum impasse a condicionar-me
aqui estou eu
— noutra posição que não essa.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Algo Para Agarrar

Capitão Insónias,
que sono que tenho!
Se fico sem dor
o que é que me sobra?

Não partas já, 
meu capitão,
ainda é cedo
e eu não quero uma noite bem dormida
e um dia assim-assim
amanhã. 

Não quero um dia neutro.
Escuro, negro, difícil
pelo menos,
mas que não passe por mim
como as imagens
pela vidraça da janela.

                *

Estação de serviço do tempo
e da história
(da minha),
eu sou o sítio
onde param para mijar.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Ensaio número 2 - Auto-biografia de mentiras convenientes

Real homem vivo

    se tudo não for um equívoco.

Internacional

    objector da limitada filosofia dos limites de fronteira.

Não político antropomorfo

    mas animal político

    por natureza da espécie humana.

Não anglófono, estrangeiro, não francês

    por serem as línguas mais importantes num tempo em que não estudou.

Obtido por geração espontânea

    ou pela teoria vigente na altura em que isto se ler.

Id do seu Ego

    salvou-se a si mesmo num grande naufrágio

    ao dividir-se em dois.

(decididamente) Não decidido

    não.

Panteísta

    nos dias bons.

Pagão do ateísmo

    nos anos maus.

Romântico poliglota

    sem língua nativa.

Espiritual

    também geométrico

    [a dupla anti-hélice!].

Não colecionador

    por falta de espaço.

Anarquista

    incumpridor das regras do anarquismo.

Envergonhado pela não originalidade do último verso

    ainda assim permanece.

Não organizado.

Não viável

    como todos somos

    mas é erro de paralaxe.

Conhecido pelo seu olfacto

    e no entanto não ladra.

Dupla negação de si mesmo.

Assiste ao tumulto do dia

    numa passividade vegetal

E às vezes no silêncio da noite,

    muda a realidade,

    exercendo melodia e luz.

sábado, 8 de agosto de 2020

Ensaio número 1 - Sozinho

Real homem vivo

não politico 

não anglófono 

não francês

não bossa nova

mas que pena 

se fosse verdade

não estagnado

não coerente 

não viável mas é erro de paralaxe como com toda a gente

ou quase toda

não europeu

grisalho gentil gentio

prolífico

não era áspero

nem ficou

não se cansa

que se saiba

sorriso fácil e grande

não se repetiu demasiado

para o tanto que escreveu

não viu deus

mas viu leões

e às vezes 

no silêncio da noite

fica a imaginar-nos aos dois

sozinho.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

sábado, 20 de junho de 2020

Exercício de mal estar

O quanto cala rompe o peito
e engolidas as lágrimas escorrem pelo mesmo buraco a céu aberto
que lhe vai sorvendo a débil luz no olhar.
Denso
silêncio absorvente ecoando 
numa torrente que lavra na cabeça e desagua na boca
que não pode articular
a espiral que diverge a consciência mas se concentra
em grito sufocado nunca escutado,
mas que prestando alguma atenção poderia palpar-se.

A névoa gelada desce em redor, em arrastão
que abate tetos sobre o chão que é caminho
das horas vazias de cabeça insuflada
pelo quente que está esta lenta noite sem sol.

Pesam as coisas grandes e as mais pequenas -
que não têm um grama a menos,
só ocupam menos dor.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Convicção ou Resiliência ou Fé

Caminhando obstinadamente
acabamos por chegar ao ponto
de estarmos fartos de caminhar.

Nem todas as falências são por falta de determinação e dos seus para-sinónimos.
À semelhança de quase todas as narrativas sobre-simplistas, é presunçosa e curta essa visão.
É um cobertor que não chega aos pés.
Às vezes nem aos joelhos que se querem dobrados.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Redundante e Sem Sentido

Hoje o absurdismo pesa-me mil toneladas
E mais do que ser esmagado por este calhau
Custa não haver uma razão para isso.

sábado, 6 de junho de 2020

Não Há Beleza Como a Tosca

Não há beleza como a tosca.
Uma pétala em falta.
Um pardal comum.
Um muro de pedra
erodido.
O cabelo desalinhado
soprado no vento.

Não há beleza como a tosca.
Um encanto que é o do mato
olhado como um jardim.
Uma pinha aberta em flor.
A cor da madeira,
o arranjo dos seus nós.
Os nós dos dedos,
finos,
trémulos por vezes.
Uma voz e os medos
finos,
trémula por vezes.

Não há beleza como a Toscana
e eu que nunca lá fui!
Um vestido primaveril numa manhã de domingo

e as manhãs de domingo sempre com sol.

Uma cicatriz pequena escondida algures

e uma história imprecisa que se avançou.

As flores ao regaço
e o regaço florido.


Uma ousadia hesitada em timidez.
Um travo de estática a confirmar uma música antiga.
Ingenuidade e astúcia,
sorrisos fáceis e desafetados,
sorrisos fáceis e de fácil análise.
Um jeito lasso, laxo,
lânguidos corpos
lânguidas tardes,
sol, erva, brisa, simples, pouco.

Não há beleza como a tosca.
Haverá sequer outra?


domingo, 24 de maio de 2020

Existir

Existir sempre foi mais dissonante do que o pop nos ensinou.

Forte na terça
frágil na quinta 
quantas vezes acordei como um leão
e passei o dia a fugir.
Entre os dias e as gentes
e o que eles gritam,
há uma certa esperança na vida
de ela nos dar não sei o quê
mas que valerá mesmo a pena,
toda a pena,
e esse mantra corre desde lá atrás,
no fundo,
e acompanha-nos 
e há uma altura em que começamos a dar por ele,
a ouvi-lo,
caminhando no seu embalo.

Mas depois vai-se andando,
vai-se andando e o tempo passa quando se anda,
e o tempo que passa também é uma distância.
E essa batida de fundo
esse som magnífico
vai parecendo mais longínquo,
mais difuso,
vai-se andando
mais implausível,
anda-se mais
ousa-se na análise e reconhece-se — mais ridículo.
E chega um dia que dás conta
que há tanto tempo que não o ouves
que não podes garantir se alguma vez ele soou.

*

Gritamos tantas verdades
e tantas mentiras
todas com a mesma convicção.

Nada é certo
mas a probabilidade acumulada do erro
é esmagadora.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Debaixo do mar

Debaixo do mar
há outro mar
corre mais denso
corre profundo.

Debaixo do mar
azul
corre outro mar
magenta
tingido dos séculos

Tingido dos séculos
fragmentos de sangue,
a alma do corpo,
milhões de fragmentos
gotículas ínfimas
a saber a ferro
sangue forjado
fragmentos, fractais, 
perdidos para o mar:
perdidos nas praias
perdidos em terra
lavados pela chuva 
escorridos para os rios
deixados no mar.

Densos
a aglutinarem-se no fundo
nas profundezas
nos abismos submersos
onde escorregam
para o centro da terra
metais fundentes
ferrosos
e rubros.

Século de águas tingidas
repetido do anterior
repetido dos seus pais,
dos seus avós,
até à primeira geração.
Até ao primeiro coração humano
a lançar sangue para as artérias e veias do primeiro corpo,
com as primeiras chagas
de uma tradição milenar.

Séculos de águas tingidas
por grandes guerras,
por minúsculas guerras, 
por dores proporcionais e desproporcionais
(o que importa?)
sangue erodido do corpo
pela agressão de viver
lavado na chuva 
tingindo as águas.

Debaixo do mar
há outro mar
parido das veias.

segunda-feira, 30 de março de 2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

O Cavalo Dado

Que jogo de fortuna ou azar o teria ali encostado?
Já ninguém se lembrava de onde tinha vindo nem quem o trouxera. Mas era um equídeo magro, com os lados côncavos da desnutrição e com grande dificuldade em se alimentar porque nem dentes tinha — e claro ninguém os tinha olhado.
Também não fazia grande trabalho na quinta e tinha muita dificuldade em locomover-se. Normalmente para se mexer tinha de ser sempre lançado por alguém, devido à sua forma cúbica.