A cortina do sonho
também pode ser corrida.
Na faca o gume
no gume o fio
no fio a carne
na carne vermelho
no sangue o sabor a ferro
do ferro — a faca
Na primeira noite em Saigão, num dilúvio,
um velho táxi amarelo foi meu alívio.
O indiano que evangeliza o mundo que chora.
Do seu pára-brisas sorri-me uma senhora
de delicadas mãos pousadas no peito.
Bem tapada e composta, mulher de respeito.
Europeia, és cristã, arriscou a sentença.
Respondi, fui, senhor, forçada à nascença.
Mas ele não queria a história da minha crença
Só que os meus ouvidos escutassem a sua.
Suspirei não mais cair na falcatrua.
Correra todo o mundo nos anos sessenta,
boémio, só a capa no estofo não aparenta.
Abraçada à minha mochila ouvi-o atenta.
Pai sique, mãe hindu, a mulher islâmica,
não era ele tonto de suplicar a cerâmica
Aos tantos forasteiros atrás no banco
mandou calar mais o seu deus branco.
Mas num dia escuro o médico lê cancro,
firme e lacónico, sem contraditório.
A medicina nada deu para esse peditório
Correu a Bangalore por salvação,
peregrinou a cada templo com devoção.
Nem gurus, nem shiva, buda ou o corão.
O vizinho padre arrastou-o ao seu território.
Sabes, Cristo curou-me antes do ofertório.
No trânsito imenso em noite de monção,
alagado por um crescente rio Jordão,
o indiano que evangeliza o mundo com fervor
compõe a cruz de malta torta no retrovisor,
proclamando a sua salvação aos setenta
e batismos redentores nas margens do delta.
Olho a janela.
Não sei de nada, não compreendo nada.
Cai a noite
porquê?
O que fiz eu para o justificar?
Aquelas vielas, aqui tão perto, onde vão dar?
Aquelas vielas escuras, aqui tão perto, mesmo dentro de casa, no andar de baixo, no corredor, à minha frente, onde vão dar?
Que ruído é este? Este resfolegar, esta respiração doentia, tão audível, quem é?
Porque é que está a ganir do meu peito?
Olho assombrado ao redor.
Uma luz ligada dentro de um cómodo ilumina a ranhura da porta.
Abri.
Cegueira absoluta. Só há luz. Uma aura amarela e um branco intensíssimo em todo o grande centro. Arde, queima, dói, abranda, ainda, abranda, melhora, difícil, devagar, ainda incapaz de perceber nada, exceto uma redução da luz. Afastou-se de mim, passou-me, transpôs-me e foi. A recuperação é lenta, os olhos estão fechados por dentro, não se conseguem adaptar a esta nova realidade. Quanto mais a consciência.
E logo, tudo de novo, como uma onda que chega. O clarão branco imenso. Branco tudo. Branco. Só isso. E uma ronca de navio, como uma tuba gigantesca a ser soprada lá no horizonte, de todos os lados. A luz avança-me novamente. Onde estou eu? Vidros em toda a volta. Está mau tempo, tempestade. A terrível ronca. É difícil organizar pensamento entre vagas. A chuva é atirada em todas as direções pelas rajadas de vento, como se nem houvesse já uma regra, uma orientação vertical, um sentido descendente. A sala da maldita lanterna. Sinto aquela tontura em que parece deixar de haver gravidade, suprime-se o exercício do peso. Desgraçado farol, pútrido faroleiro, a luz aproxima-se novamente. Tudo menos isso. Vi a tempo.
Comecei a mover-me, à frente dela. A sala é circular. Eu caminho antes da luz, ela segue-me. Ela empurra-me. Ela incita-me com uma chibata na espinha e ferrugentas farpas raspadas nas costelas. Não preciso correr nunca. É só um ritmo acima do confortável. Tive sorte. As chibatadas doem, mas costumam ser atiradas para locais alternados, e esse cuidado é louvável.
187 voltas para já, estou exausto, já não respiro como no início a encher os pulmões — isso é quando se tem ainda demasiado medo e algum vigor. Já lá vão mais de dois anos, agora é só deixar a boca entreaberta e vai passando algum ar. Em Estocolmo o dia está bem melhor que cá, aqui a humidade está insuportável. Eu agora vivo lá. Fizemos um acordo: sempre que atinjo o meu limite absoluto de conseguir mover -me àquela velocidade o ritmo reduz para metade e eu continuo mais devagar. Tive muita sorte. Tenho a minha garantia, nunca serei alcançado.
Este é o segredo, ter sempre uma rede de segurança. Um garante. Negociei bem. Outros teriam ficado mal. Tenho um amigo que um dia acordou e lhe disseram que rodariam uma roleta com 10 mil números todas as noites, uma vez só a cada noite, todas as noites. Quando saísse o zero ele não acordaria. O tipo enlouqueceu, claro, que vida era aquela?
As ondas em meu cabelo
Solto do teu medo de mar
Hábito de chão
Em que rolas de punhos fechados
Sobre os olhos tão cerrados
À luz
Calor algum atravessa
O corpo em fuga
Da vida que em volta
Ameaça desenrolar
Sobre ti
um dia, num prado primaveril, desmaiou-me uma flor, só por lhe dizer de uma forma mais áspera para sair do caminho.
Burro que caminhas
mas não corres
nessa tua pele de burro
nesse teu pelo castanho e nítido
que contrasta contra este nevoeiro branco.
Tu que entendes o mundo pelos cascos
e que não é uma forma pior nem melhor
de o entender
do que a minha,
é simplesmente diferente
e é-me inacessível.
Tu com as tuas duas orelhas evidentes
que dançam à frente das minhas imóveis e encolhidas orelhas,
ouves tão melhor que eu
mas nunca ouvirás
o desdém
com que usamos o vocábulo que atribuímos para te designar.
E ouvindo
se entendesses
provavelmente nem te importarias
porque o orgulho deve ter pouca expressão
fora da espécie humana.
E é tão bacoco.
arrumo cada canto
enquanto
me desabam os recantos
busco acertar meu passo
ao passo
que me perco no compasso
descompassado
águas residuais passadas
movem-me moinhos
pedra dura
fúria mole
dura
fura
O título não faz parte do poema?
Não devia também ser uma pergunta?
A poesia tem de ser verdade?
A arte verdadeira não se chama jornalismo ou história?
Para quê continuar com isto?
Nem um poema há de ser,
que o defraude na arte tem de ser grande para valer a pena. Será à descarada. Ninguém gosta de ver um filme mediamente mau. Que seja ultrajante então. Que saiam do cinema nauseados. Que se façam manifestações, que haja mensagens de ódio nas redes sociais, ameaças ao autor. Mas nunca placidamente desapontante — esse é o nadir da vocação inútil da arte. Eu se não chegar a bom preferia quedar-me por repulsivo, com estrangeirismos absolutamente despropositados no texto, por exemplo. E com um abuso de auto-referência e recursividade, que de resto até é um defeito que também está bem patente na poesia decente. Que se note a implícita, e depois explícita, todavia ridícula, sugestão de que ser poesia se baliza pelo grafismo do texto. Que se seja condescendente com os leitores e se lhes explique as já parcas subtilezas. Sem coragem — nem isso — para um insulto ou crítica, que se ofereça uma insultuosa ajuda.
Não só uma obra contra si mesma. Uma obra contra quem a assiste.
Isto se não chegar a bom pelo menos que se fique no que já é.
É na raiz que está
a dor.
Cá fora é um regimento de suspeitos
circunstanciais,
gente com cadastros tingidos
por delitos menores
apanhados numa rede de garimpo
mal cosida
mas sedenta
de um culpado
sedenta
de encontrar o cascalho
no meio do ouro.
Quando pensam na vossa própria morte o que contemplam? Ficam a intuir como será a experiência pós-vida? Ou ficam a imaginar como reagiriam as pessoas mais próximas, as mediamente próximas, uma pessoa particular com quem pouco interagiram, quem seria a pessoa que descobria primeiro, como seriam as logísticas fúnebres e sobretudo emocionais dos vivos?
No fundo
na escura cova do nosso âmago
antes da insinceridade de todos os filtros e bandeiras de que somos partidários
e que interpomos sempre
que nos debruçamos conscientemente sobre isto
— no fundo —
todos diferentes temos igual convicção
que não há história
nem experiência
depois do fim.
Depois do fim não há nada.
Nada.
Nem mesmo vazio. Nem ausência. Nem nada.
Depois do fim não há.
A história escrever-se-á pelos vivos, o objetivo e o subjetivo pertencerão aos que respiram, quer a carne quer o éter são cognoscíveis pelo mesmo lado da barricada — os que não falam também não têm nada a dizer.
O nosso interesse historiográfico ou emocional pela nossa morte resume-se à experiência dos vivos, tal é a improbabilidade do resto ser relevante.
E um morto também não tem interesses.
Aprendia mais coisas
E achava-me então muito sábio.
Isso era evidência que não estava a aprender as coisas certas.
Querer do tempo,
mais.
Querer da dor,
ausência.
Querer do sonho,
substância.
Querer de mim,
outro.
Querer da neve,
branca.
Mas querer do branco,
quente.
Querer do outro,
outro.
Querer de tudo,
algo.
º
Querer de querer,
parar.