Estar sempre a fugir da cura
E a rezar para que ela chegue.
A posse é uma troca.
Parece unívoca, mas não é, é uma troca.
Quando se possui algo ganha-se um direito mas perde-se um grau de liberdade.
Quando nos movemos num estado prévio, pueril e casto — que nunca chega realmente a existir — movemo-nos livres, equidistantes de tudo, porque não há referencial. A posse estabelece uma posição relativa, que deve ser mantida, no sentido de garantir esse mesmo direito transacionado.
Nós, seres desenhados na selva, projetados para a escassez, estamos intrinsecamente dispostos a abdicar da liberdade — um dos poucos bens abundantes na era pré-moderna — pelo direito de propriedade. Mas a posse paga uma renda alta. A posse exige manutenção e tem onerosos custos alocados à preservação do referencial. A posse é um saco pesado e grande e uma preocupação com ele ainda maior.
A posse e o desejo de exclusiva propriedade são intrínsecos e também por isso poderosos. São anti-pluralistas e são anti-democráticos, pelo menos na assembleia interna de cada um de nós. Ofuscam. Falam num tom demasiado alto. Não dão espaço à expressão de outros pensamentos no referencial cognitivo-emocional.
A posse é ubíqua.
A única cura é o eremitério.
Embora não pareça, o Ténis é um desporto que vale sobretudo pela música.
Percebi isso, certa vez, quando ouvi um surdo-mudo dizer que o ténis não passava de duas pessoas a jogar raquetes.
Acompanhe, meditando as palavras:
Quero fazer o que é melhor para mim.
Tenho uma crença do que será o melhor para mim.
Faço uma coisa diferente disso.
Conclua:
O que quiser.
Na matriz em que se monta a nossa existência
há uma sinfonia cósmica,
um elegante ensemble de cordas
que vibram
e são tão resistentes
que são capazes de manter suspenso este universo
como uma camisa pregada num estendal de outono.
Eu só queria agarrar-me a uma.
Qual liana.
A expressão de descoberta e assombro é ordinariamente mal tratada, com uma indignação que não tolera a demora, e urgentemente retribuída com a incontestável prova de superioridade que é ter chegado primeiro a qualquer coisa, numa resposta deserta, incapaz de pasmo algum perante algo que, sim, é maravilhoso mas que já caducou a novidade, não havendo lugar para observações redundantes, já está tudo dito.
O que eu sei é impensável ignorar.
Há quem veja numa guitarra o corpo de uma mulher
Isso para além de ser um salto modesto
tem o verbo errado.
Não é ver.
É ouvir.
Nasci em Marco de Canaveses, terra pequena, não tinha cinema, nem teatro, nem concertos.
Na minha turma havia três mulatos e uma menina com trissomia. Ninguém nunca lhes chamou nomes por isso. A dona do meu infantário era negra, tia de uma colega minha, eu não a achava diferente, achava-a mais morena. É assim que eu sei que não nasci racista, é uma coisa que me vai acontecendo, uns pensamentos que entram sem querer.
Fiquei admirada quando o Rajesh me contou que, criado em Lisboa, nunca teve amigos na escola, que todos eram maus para ele, inclusivé um ou outro professor.
Ele é francamente normal para quem não teve amigos até à faculdade. No Marco talvez ele fosse exótico e isso lhe garantisse um grupo de amigos no recreio. Em Lisboa ele não encontrou amigos, e em Lisboa há teatros e museus.
Os olhos em que vão
estas imagens
são cegos
por dentro.
Os olhos em que vão
morrer
estas imagens
são mudos
mudos.
Os olhos em que vão
passando depressa
estas paisagens
as bermas de estrada
a cadência dos postes
a calçada incerta
as fachadas
cada porta
caminham rápido
passada larga
nervosa e contemplativa
(dá para ser?)
(dá, mas gera angústia)
Esses olhos
são uma porta
fechada
sem querer.
Jasmim,
és só um nome
não és uma flor
és um nome de flor.
Não sei como és,
não sei a que cheiras,
e se sei
não sei saber.
Se eu já te vi
jasmim,
foi então bonito
jasmim,
porque te vi só a ti,
sem o teu nome,
sem mais nada.
Já fomos livres
jasmim,
se calhar.
Tu eras só flor,
eu era só ver-te.
Livres.
Anónimos.