terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Parecido

Éramos tão parecidos
que parecia 
veja-se bem
até mentira.
Quer em aspecto quer em graça
qualquer aspecto
veja-se bem
nos fluía
igual.
Mais até que igual
simétrico
como uma dança
e a dança
veja-se bem
porque é bela.
Se bela for.

Então
vendo-me bem
e já até demais
saí da frente do espelho
unilateralmente.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A descoberta e o assombro são ordinariamente mal tratados

A expressão de descoberta e assombro é ordinariamente mal tratada, com uma indignação que não tolera a demora, e urgentemente retribuída com a incontestável prova de superioridade que é ter chegado primeiro a qualquer coisa, numa resposta deserta, incapaz de pasmo algum perante algo que, sim, é maravilhoso mas que já caducou a novidade, não havendo lugar para observações redundantes, já está tudo dito.


O que eu sei é impensável ignorar.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

No sentido ao lado

Há quem veja numa guitarra o corpo de uma mulher

Isso para além de ser um salto modesto

tem o verbo errado.

Não é ver.

É ouvir.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sociologia de trazer por casa

Nasci em Marco de Canaveses, terra pequena, não tinha cinema, nem teatro, nem concertos. 

Na minha turma havia três mulatos e uma menina com trissomia. Ninguém nunca lhes chamou nomes por isso. A dona do meu infantário era negra, tia de uma colega minha, eu não a achava diferente, achava-a mais morena. É assim que eu sei que não nasci racista, é uma coisa que me vai acontecendo, uns pensamentos que entram sem querer. 

Fiquei admirada quando o Rajesh me contou que, criado em Lisboa, nunca teve amigos na escola, que todos eram maus para ele, inclusivé um ou outro professor.

Ele é francamente normal para quem não teve amigos até à faculdade. No Marco talvez ele fosse exótico e isso lhe garantisse um grupo de amigos no recreio. Em Lisboa ele não encontrou amigos, e em Lisboa há teatros e museus.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Os olhos em que vão

 Os olhos em que vão

                            estas imagens

são cegos

        por dentro.


Os olhos em que vão

                            morrer

                                    estas imagens

são mudos

           mudos.


Os olhos em que vão

                        passando depressa

                                    estas paisagens

as bermas de estrada

          a cadência dos postes

                   a calçada incerta

                            as fachadas

                                   cada porta

caminham rápido

        passada larga

nervosa e contemplativa

        (dá para ser?)

             (dá, mas gera angústia)

Esses olhos

      são uma porta

           fechada

               sem querer.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Jasmim

Jasmim,

és só um nome

não és uma flor

és um nome de flor.

Não sei como és,

não sei a que cheiras,

e se sei

não sei saber.

Se eu já te vi

jasmim,

foi então bonito

jasmim,

porque te vi só a ti,

sem o teu nome,

sem mais nada.


Já fomos livres

jasmim,

se calhar.

Tu eras só flor,

eu era só ver-te.

    Livres.

        Anónimos.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Preia-mar, Baixa-mar

 Ora cheias

        Ora vazas

São marés

        Dentro de mim.

Sobrávamos Lá Nós

Sobrávamos lá nós. Quantos? Talvez nem meio. Talvez nem meio fossemos. Todos os outros já tínhamos perecido pelo meio da jornada. Todas essas versões de alter-egos nossos já tínhamos morrido, algures, distraídos com qualquer miudeza, qualquer pedra brilhante ou inseto mais colorido que acabámos por seguir até escorregarmos num abismo ou perdermos o grupo.
O último bastião do movimento estava ali, agora, nesse momento derradeiro, entre a espada e a parede. E eu só conseguia andar em frente, tal era o meu medo da parede. Lisa como um conceito. Limitante. E tu seguravas a espada de forma tão frouxa, e ela enterrava-se mal no meu peito. As lágrimas eram já mais que o sangue. E claro que as lágrimas são um sangue muito mais sério, sobretudo menos espalhafatoso, e foram elas mesmo lavando o rasto vermelho escuro, velho, do sangue poluto. Eu avançava com os ombros adiantados fugindo inutilmente à parede junto da qual eles haviam de ser sepultados. A ponta da espada era torta e ferrugenta, o gume gasto. Surpreendia-me não te ser demasiado pesado um instrumento assim. Tremias das mãos e não sei se também te tremia a voz, porque não falaste, até ao fim.

domingo, 25 de outubro de 2020

sábado, 24 de outubro de 2020

O objectivo da vida

é preparamo-nos para a morte
é viver uns bons anos, com sorte
e naqueles já mais tardios
mais achacado aos bafios
ir-se desligando aos poucos 
sem custar muito aos outros
(sem nos custar muito aos outros!)
num processo que não se quer
com uma velocidade qualquer
mas antes bem tenteada
que pareça que vem lenta
mas sem chegar atrasada.
a gente bem pede e tenta:
mais devagar para não doer
mais rápido para não custar!
uma velocidade que seja
o quanto baste (!)
— para amortizar a dor —
deixar esmorecer o ardor,
que já sem grandes projetos
deixam-se melhor os netos.
de preferência já visitado
por uis e ais
(meus bons vizinhos)
de uma por outra dor nas costas 
que já façam chegar às portas
do pensamento a ideia
que ela pode nem chegar feia
(afinal se há quem vista bem de preto,
talvez também um esqueleto!)

É que lá na madeira estirado
com as juntas a pedir unto
o velho lombo castigado
não dá sinais do caruncho,
nem consta de nenhum auto
de queixas dos silenciados
que os ossos de tão esmifrados
dêem dores a algum defunto.

 *

Ah, definhar suavemente pela existência fora, como quem cai no sono.
Escutei a vida, plena:
— um fade out desde a infância.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Grande Angular

A floresta via-nos debaixo
Os pés grandes e as cabeças pequenas
E temia que o nosso poder fosse desproporcional à nossa responsabilidade.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

sábado, 3 de outubro de 2020

De mansinho

Acerca-te de mim, beleza — rezei.

E procedi com tal delicadeza

Como se estivesse a atrair um gato.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Morde-me

Morde-me.

Come os meus velhos restos.

Alguém tem de acabar

esta refeição.

Alguém será o último

a servir-se.

Doo o meu término

sem reservas

e até com um negro orgulho

aos teus sanguíneos caninos.